terça-feira, 24 de maio de 2011

EM TODOS NÓS MORA UMA CRIANÇA QUE CHORA.




TEXTO BRILHANTE DO PSICANALISTA RUBEM ALVES
NO FINAL, CONSIDERAÇÕES MINHAS, ANDRÉIA MIGLIORANZA MARIN.

REPORTAGEM TRANSPOSTA DA REVISTA PSIQUE. ED. 57 DE 2010.

"Uma criança chora...
Mesmo com o avanço da idade e do eminente amadurecimento, mora em nós uma criança que vive com seus medos e angústias. E que, por vezes, nos faz derramar lágrimas."

Minha alma tem estado a visitar a minha infância. Fantasias. O que são fantasias? As fantasias de infância são as memórias transfiguradas pela saudade. Eu poderia colocar minhas fantasias de infância em álbuns diferentes, como se fossem fotografias. Fantasias dos pequenos espaços (a cabaninha, a casa no alto da árvore), as fantasias dos grandes espaços (os campos, os jardins), as fantasias da noite com seus terrores...
Antigamente... essa palavra me intrigava. Ouvia que os grandes em suas visitas noturnas a usavam com frequência. E eu perguntava: “Quando é antigamente?” Nunca me explicaram. Mas agora eu sei quando é antigamente. Pois antigamente os grandes gostavam de fazer sofrer as crianças. Acho que eles pensavam que as crianças não tinham o “lá dentro” onde mora o sofrimento.
Os grandes me faziam sofrer e riam do meu sofrimento. Mentiam para me fazer sofrer. Eu devia ter uns quatro anos, na roça. Perto da casa havia uma mata fechada. Por medo, eu nunca me aproximei dela. Diziam que lá moravam onças. E os grandes me diziam que naquela mata fechada morava um menino. E, para provarem, diziam: “Quer ver?” E gritavam: “Ô menino!” O grito batia na mata e voltava como eco bem fraco: “Ô menino...” Mas eu nada sabia sobre ecos. Sim, era a voz fraca de um menino abandonado. Que pais o teriam deixado lá? E por que ele ficava lá?
E a imagem daquele menino não me deixava. De noite, na minha cama, eu me lembrava dele sozinho no escuro. Como eu desejava poder trazê-lo para a segurança da minha casa! Mas eu nada podia fazer. E assim dormia, sofrendo o abandono do menino. Nunca vi o dito menino, porque ele não existia. Mas a alma não sabe o que é isso, o não existir. Aquilo que é sentido existe. A alma é um lugar assombrado onde moram as mais estranhas criaturas que, sem existirem, existem.
Lembro-me de que, numa dessas noites, eu chorava baixinho. Chorava de angústia. Minha mãe ouviu o meu choro e veio assentar-se ao meu lado para saber o que me fazia sofrer.
Expus-lhe, então, a minha aflição: “Mãe, quando eu crescer, como é que vou fazer para arranjar uma mulher?”, “Mãe, quando eu crescer como é que vou fazer para ganhar a vida?”
Quem tomar essas perguntas no seu literalismo se rirá delas. Não é engraçado que problemas tão distantes façam uma criança chorar? Mas o seu sentido não se encontra na letra. Ele se encontra no não dito, na noite escura de onde surgiram, noite da minha alma, aquela noite quando seria inútil chamar por pai ou por mãe, porque não haveria ninguém para ouvir. Naquela noite eu chorava pela minha solidão, pelo abandono que me esperava, quando eu seria como o menino da mata.
O menino abandonado não me abandonou. Entrou dentro de mim e mora comigo. Me faz sofrer. Me dá ternura. Sempre que vejo uma criança abandonada, eu sofro. Quereria poder protegê-la, cuidar dela. Eu me enterneço porque a criança abandonada que mora em mim está sofrendo. Afinal, todos somos crianças abandonadas. Nos momentos de solidão noturna, de insônia, tomamos consciência de que estamos destinados ao abandono, àquele tempo quando será inútil chamar “meu pai” ou “minha mãe”. É assim que me sinto, às vezes. Tenho, então, vontade de chorar...

CONSIDERAÇÕES: Rubem Alves passa a sua mensagem que não precisa de explicações, pois se o fizesse perderia o 'brilhantismo' do texto. Mas surge também outras possibilidades de reflexão, sim, as crianças entendem o que lhes é dito de forma literal, e temos que ter um cuidado especial em relação a isso, pois devemos explicar-lhes as coisas para que entendam. Eu, mesma em minha infância, 4 anos, tinha uma professora que por vezes dizia duas frases em sala de aula: "Esta noite terei que dormir na pia de tanto chorar, porque vocês me deixam tristes", sim, eu imaginava minha professora dormindo literalmente em uma pia pois choraria a noite toda. E sua outra frase era, ainda sobre deixarmos-na triste: "Vou sentar no meio da rua e chorar", imaginava minha professora chorando no meio de rua onde passavam muitos carros e buzinavam para ela sair dali, certa vez, cheguei a ficar com medo pensando que ela poderia ser atropelada. Devemos ter cuidado sobre que mensagem queremos passar as crianças, pois há formas de dizer, sem precisar provocar nelas alguma angústia desnecessária. É também importante aceitarmos as crianças que vivem em nós, pois também temos vontade de chorar, e porque não deixar que essa criança saia de dentro de nós para que ela possa respirar e se aliviar ao invés de ficar sufocada dentro de um quarto escuro. Esta criança que as vezes procura emergir pode nos ajudar na elaborações de coisas angustiantes, pois quando voltamos ao "antigamente" resgatamos coisas que nos permitirão melhor compreesão da vivência atual.

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