REPORTAGEM TRANSPOSTA DA REVISTA PSIQUE - ED.50 DE 2010.
Por Geraldino Alves Ferreira Netto
Freud veio revolucionar o conceito de sexualidade, direcionando-a para outro objetivo: a busca do prazer. Também ousou afirmar a existência de uma sexualidade infantil, polimorfamente perversa, até então ignorada. A resistência a esta teoria veio do desconhecimento por parte dos adultos, e da dificuldade de entenderem a distinção feita por Freud entre o sexual e o genital.
Quando Freud atribuía o valor de normalidade a essas perversões infantis, compostas de curiosidade pelo sexo oposto, voyeurismo, exibicionismo e toques físicos, estava descrevendo um comportamento que as crianças pequenas desenvolvem entre si, todas da mesma idade ou de idade aproximada.
Acumulador de energia
Em outro texto, de 1930, pouco conhecido e não incluído nas Obras Completas, em que Freud escreveu, em parceria, a biografia de Thomas Woodrow Wilson, um presidente dos Estados Unidos, encontramos uma comparação muito original da relação mãe-criança. O bebê é comparado aí com um 'acumulador de energia', como a bateria de um carro, que precisa receber uma carga de energia para fazer funcionar o motor. A mãe, por sua vez, é chamada de 'usina libidinal', cabendo-lhe a tarefa de transmitir ao filho uma quantidade de energia. Ela o faz não só pelos cuidados de higiene e alimentação, mas, sobretudo, pelo afeto e amor que transmite quando proporciona os cuidados próprios da função materna. Ela o faz quando acalenta e acalanta seu bebê. Trata-se de uma energia erogenizada, carregada do desejo da mãe e que provoca desejo no filho também. Na sequência, alguém tem que desligar a bateria da tomada, função que recebe a denominação de paterna.
Isto é, o Complexo de Édipo supõe um momento inicial incestuoso, seguido da operação de castração, de interdição, para que a criança possa ingressar no mundo da lei, da cultura, da sociedade. A castração não proíbe à criança continuar desejando a mãe e o pai como tais, mas proíbe que ela os deseje sexualmente como mulher e homem. Aquela perversão infantil inicial, normal, inclusive incestuosa, vai transformar-se possivelmente numa neurose que podemos chamar de normal também, decorrente, esta, do recalque sobre os desejos incestuosos.
O que faz a diferença entre a Psiquiatria e a Psicanálise é que a primeira apresenta listas de perversões ou parafilias, que são comportamentos observáveis e classificáveis, fenomenológicos, considerados transtornos patológicos, enquanto que, para a Psicanálise, tais atos são normais, desde que propiciem prazer àqueles que os pratiquem, adultos que consentem em participar, solitaria ou solidariamente, dos mesmos. Nesta perspectiva, nenhuma atividade sexual é intrinsecamente má, nem um ato reprovável pela sua própria natureza. A palavra 'perversão' é, então, tomada em seu sentido etimológico de 'várias versões', ou várias maneiras de se conseguir prazer com o sexo. E o conceito de 'perversão', na Psicanálise, no singular e não no plural, é uma posição psíquica subjetiva, uma estrutura clínica, diante da castração.
O Dicionário Houaiss da língua portuguesa assim define a pedofilia: 1. perversão que leva um indivíduo adulto a se sentir sexualmente atraído por crianças; 2. prática efetiva de atos sexuais com crianças (p. ex., estimulação genital, carícias sensuais, coito etc).
Não é tão fácil caracterizar o crime de pedofilia, se levarmos em conta essa definição porque, no primeiro sentido que ele apresenta, de atração sexual do adulto pela criança, teríamos uma pedofilia lato sensu, quase platônica que, circunscrita somente à fantasia do adulto, sem agregar uma prática sexual, não seria crime. O segundo sentido descreve a pedofilia propriamente dita, que inclui a prática sexual do adulto com crianças. Mesmo nessa, a costumeira ausência de testemunhas pode dificultar a investigação, mas não a caracterização pedófila.
Costuma-se alegar, para justificar a prática da pedofilia, que a criança gostou, consentiu, ou não se opôs. Estamos aqui no cerne da questão. Acontece que a única experiência que a criança conhecia, até então, foi aquela vivida dentro da família, com os cuidados maternos descritos acima. Por mais íntima que seja a intervenção da mãe ou do pai nos cuidados com os filhos, é uma intimidade que tem limites precisos, impostos pelos próprios pais, com raras exceções.
Se defendemos a tese de que a pedofilia é uma das perversões elencadas nos manuais de Psiquiatria e que também se inclui na definição de perversão proposta pela Psicanálise, resta esclarecer o que é a perversão como estrutura clínica. A melhor e mais avançada definição de perversão foi a que Lacan apresentou. Fazendo um jogo de palavras tipicamente francês, chamou-a de père-version (versão do pai, versão da lei), uma das 'escolhas' subjetivas inconscientes que podemos fazer diante da lei da proibição do incesto. Seguindo sua trilha de desbiologizar e dessexualizar o Complexo de Édipo, Lacan propõe pensar que a perversão não se constitui de nenhum tipo de atividade sexual propriamente dita, mas está inserida na estrutura do discurso. Quer dizer, se o psicótico está, de certa forma, fora da lei da linguagem codificada, pela forclusão do significante do Nome-do-Pai, ou ausência da castração, e se o neurótico está amarrado no laço social e simbólico da linguagem, pela submissão à lei do pai, o perverso é aquele que oscila entre o simbólico da linguagem e o imaginário de uma lei caprichosa que ele inventa para si mesmo em determinadas situações que lhe convenham, a seu bel-prazer.
O perverso utiliza (ou abusa) do outro para seu próprio gozo.
A criança pensa que o adulto vai só repetir aqueles carinhos amorosos que seus pais lhe dão, com limites precisos, sem suspeitar de algo que ela ainda não conhece, uma experiência sexual-genital, para a qual não está preparada nem física nem psicologicamente, sem chance, portanto, de consentir. Ela fica atordoada com a novidade, percebe que algo está errado, sente culpa, tem medo de contar para os pais, até porque normalmente é ameaçada no caso de comentar com alguém. Aí começa o trauma, aí está o crime. Mesmo sem a abordagem física, um dano moral ou psicológico traumatiza a criança.
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