segunda-feira, 27 de junho de 2011

Traumas da perda


Texto retirado da revista Mente e Cérebro. ed.209, junho 2010.


No Brasil, em média, duas em cada dez crianças morrem ainda na barriga da mãe, em decorrência de aborto espontâneo. Mães e pais que passam por essa situação sofrem durante longo tempo, pois embora não tenham tomado seus bebês nos braços, desenvolvem com eles uma relação íntima de afeto
por Anette Kersting
©DIANA ONG/SUPERSTOCK/GETTY IMAGES

“Estou na cozinha e de repente começo a sangrar. No entanto, hoje ao meio-dia ainda estava tudo bem no ultrassom. Tudo acontece muito rápido: meu marido chama a ambulância e vejo a poça de sangue embaixo de mim; tenho um pressentimento terrível. Acho que meu filho não vive mais. Fico desesperada. Quando os enfermeiros me deitam na maca, fico calma – tudo parece irreal. No hospital, todos que me atendem parecem agitados. Um médico me examina com um instrumento de metal gelado. A ultrassonografia confirma o que eu já sabia, mas insistia em não acreditar: meu bebê está morto. É preciso fazer logo uma curetagem. O médico diz que eu ainda poderei ter muitos filhos. Mas meu bebê está morto. Ele não pode ser substituído por nada nem por ninguém. Nunca.” (Depoimento de paciente do Hospital da Universidade de Münster que sofreu um aborto.)

A morte do filho antes do nascimento joga a maioria das mães e pais em uma profunda crise. Se os médicos supunham há 30 anos que o melhor para os casais seria esquecer o evento o mais rápido possível, hoje – graças à psicologia e à psicanálise – se sabe que as reações à perda de um filho antes do nascimento só se diferenciam fracamente das que ocorrem em outros casos de luto. No entanto, sua magnitude raras vezes é percebida por aqueles que rodeiam as pessoas que passam por essa situação e, não raro, os homens encontram ainda menos espaço para viver sua tristeza. Dependendo do estudo, entre 10% e 30% das crianças morrem ainda antes de nascer. No fundo, isso pode ocorrer em qualquer período de uma gravidez. Até a 16a semana, os médicos falam em aborto precoce, depois; em aborto tardio. Mais da metade de todos os abortos espontâneos ocorre, no entanto, antes do terceiro mês de gravidez. E somente os bebês com peso corporal de 500 gramas que morrem antes ou durante o parto são considerados “crianças nascidas mortas”. Embriões menores não têm registro civil nem direito a enterro.

O estresse psicológico sofrido pelos pais pelo abortamento ou pelo nascimento de um bebê morto já foi muitas vezes estudado cientificamente. Nesses trabalhos, as mulheres geralmente eram focadas de maneira mais intensa que os homens. Em 2005, nosso grupo de trabalho do Hospital da Universidade de Münster estudou os dados de pacientes mulheres que haviam perdido um filho antes do nascimento entre 1995 e 1999. Descobrimos que dois terços delas ainda experimentavam um grande trauma, mesmo quando já haviam se passado dois a sete anos da perda. A intensidade de sua dor pouco se diferenciava dos sentimentos de perda em mulheres cujo abortamento ocorrera havia apenas 14 dias.

Esses resultados não sugerem processos de luto excepcionais ou mesmo patológicos, mas mostram, isso sim, que antes do nascimento já existe uma relação intensa entre mãe e filho. Em comparação com mães de bebês saudáveis, as mulheres que perdem o filho no último trimestre de gravidez enfrentam alto risco de sofrer de depressão. Isso foi comprovado em 2003 por Jesse Cougle e seus colegas da Universidade do Texas, em Austin. Em 2007, nossa equipe finalizou um estudo próprio sobre as sequelas psicológicas de pacientes cuja gravidez teve de ser interrompida por motivos médicos já na fase tardia: quase 17% das mulheres ainda sofriam 14 meses depois de depressão ou ansiedade.


Outro risco frequentemente subestimado diz respeito ao próximo filho gerado após um aborto. Em geral a perda não influencia a probabilidade de a mulher dar à luz um bebê saudável. Mas a gravidez fracassada pode influenciar a ligação da mãe com a criança gestada em seguida, conforme descobriram em 2001 pesquisadores do Departamento de Psiquiatria do Hospital Escola St.George, em Londres. Assim, por medo de uma nova perda, quando engravidam outra vez muitas mulheres assumem um relacionamento menos intenso com os filhos que estão gestando. Em comparação com crianças de um grupo de controle, esses bebês apresentam por volta dos 12 meses, em alguns casos, apatia e, em outros, irritação e ansiedade, o que reflete a fragilidade da ligação afetiva com a mãe, podendo surgir mais tarde problemas de autoestima e distúrbios comportamentais.

À primeira vista, poderíamos pensar que os pais desenvolvem uma relação menos estreita com seus filhos que não chegaram a nascer, em comparação às mães. Estudos recentes, porém, contrariam essa suposição. Os psicólogos britânicos Martin Johnson e John Puddifoot observaram, por exemplo, que homens que viram uma imagem de ultrassom de seus filhos e ouviram seu coraçãozinho bater sofriam mais intensamente com a perda do que aqueles que não tinham essas experiências – e lembranças. Aparentemente, a existência de exames médicos mais sofisticados estimula a ligação entre pai e filho.
Já em 1995 psicólogos da Universidade de Rochester, no estado americano de Nova York, tentaram descobrir se mães e pais apresentam diferentes sintomas quando não conseguem lidar com a morte de seu bebê. Eles acompanharam 194 mulheres e 143 homens nessa situação e constataram que elas sofriam mais frequentemente de depressão e medos, enquanto mais da metade deles recorria ao álcool.


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