Esse artigo foi escrito por Anderson Matos e acho importante que tenhamos conhecimento do que a psicanálise tem a dizer sobre a dependência química. O texto é grande mas vale a pena.
Retirado do site RedePsi- 19/11/08
Este artigo faz algumas considerações sobre a toxicomania e o alcoolismo, a partir do referencial psicanalítico. A máxima "O supereu alcóolico é solúvel em álcool" proferida em 1947 por Ernest Simmel serve de guia para algumas considerações teóricas sobre o assunto. Alguns apontamentos sobre supereu e toxicomanias
Palavras chave – toxicomania, supereu, psicanálise, clínica
Essa comunicação tem por objetivo uma leitura sobre a questão da incidência do supereu na sua relação com as toxicomanias. O supereu freudiano, representante da lei, instância que expia o sujeito parece se arrefecer diante dos efeitos do álcool. Essa foi a tese levantada por Ernest Simmel em 1947, quando elaborou a máxima ‘o supereu é solúvel em álcool’. Esta afirmação serviu por muito tempo como orientação para aqueles que praticam a clínica das toxicomanias. A idéia prevalente é a de que a censura, proveniente do supereu pode ser apaziguada pelo uso do álcool. Supunha-se de certa maneira que o supereu pudesse ser debilitado, diluído sob o efeito de etílicos se tornando menos permeável à censura.
Em 1992 por ocasião da V jornada do CMT
– Centro Mineiro de Toxicomania, Bernard Lecoeur proferiu uma série de conferências para o evento, o psicanalista é um dos coordenadores do G.R.E.T.A. – Groupe de recherche et etudes sur le toxicomanie et l’alcoolisme (Grupo de pesquisa e estudos sobre a toxicomania) vinculado ao Campo Freudiano. Este grupo, de orientação lacaniana lida na França com o tratamento e a pesquisa sobre o assunto.
Em uma de suas conferências: - ‘Por que o supereu não é solúvel em álcool’, Lecoeur enuncia a máxima forjada por Ernest Simmel. Simmel é um contemporâneo de Freud e foi considerado um pioneiro por ter em 1926 dirigido a clínica Tegel. Seu pioneirismo se deve entre outros fatos, à aplicação da teoria da psicanálise em uma instituição para tratamento de pacientes neuróticos, psicóticos, alcoolistas e toxicômanos.
Simmel formulou que ‘o supereu alcoólico é solúvel em álcool’ tendo a máxima obtido sucesso junto aos que se interessavam pelo assunto. A formula da conta ‘da dimensão do excesso, da desmesura que se liga a esse fenômeno sem que um apelo seja feito a virtude moral ou as suas falhas’ (Lecoeur 1992). Na presença do álcool a desinibição impera, uma inclinação à verdade surge sob a máscara da embriaguez, in vino, veritas, no vinho, a verdade.
Porém mesmo que uma verdade necessária seja dita na embriaguez, ela vem como balbuciação etílica. Os tropeços da fala e a exaltação que acompanham essas verdades aos borbotões, desqualificam o que diz o homem embriagado.
As amnésias posteriores nos obrigam a pensar que a embriaguez produz um evento sem sujeito. O homem embriagado tem comprometida sua faculdade de julgar, desinibido, faz e fala coisas que sóbrio, jamais os faria. O álcool permite manifestações efusivas que vem em arroubos. O que fica contudo na memória de seus interlocutores parecem ser verdades sem medida, destemperadas pelo álcool. Sua fala que não faz laço social, cacofonia das palavras. De certa forma essa fala sem censura pode ser tomada por nós como um índice da idéia da solubilidade do supereu, no que diz respeito a seu aspecto moral.
Lecoeur ressalta que é correto pensar de certa maneira que o álcool permita restringir as conseqüências subjetivas dessa submissão à censura. Essa censura que imana do supereu, e que o sujeito tomou dela conhecimento através do agente paterno no complexo de Édipo. O supereu que se torna o censor internalizado do eu mediante a influência dos pais. O complexo de Édipo é o lugar primeiro onde se encena para cada sujeito o lugar do desejo e da lei. A conclusão do complexo de Édipo deixa no homem a marca de uma lei. Um não inaugural fica como cicatriz para o homem de que existe uma lei que regula um para-todos. Para que exista desejo, há uma interdição que faz inaugurar uma falta. Lacan nos lembra que para todos os sujeitos que foram normatizados pelo complexo de Édipo, um objeto vai cair, existe para o gozo um limite.
O supereu como nos ensinou Freud é herdeiro do complexo de Édipo e por isto traz a marca de uma interdição.
Mas parece importante notar que na releitura que Lacan fez da obra de Freud todo o destaque que ele dá aos aspectos paradoxais do supereu. Ele notifica que o supereu esta instância moral, engendrada no sujeito como a marca da lei, pode se manifestar de maneira paradoxal. Não escapa a Lacan que o supereu também é herdeiro do isso, e mais do que enunciar a lei, ele é também seu desconhecimento, o supereu pode ser um imperativo de gozo: - Goza! (Lacan, 1972-1973 Sem. XX ).
Pode-se assim tentar investigar a pertinência da hipótese relativa à suposta solubilidade do supereu à luz das contribuições de Jacques Lacan. Na toxicomania parece muito mais razoável supor que a presença de um supereu inclinado a exortações, que um supereu que apresenta sua ação apaziguada ou debilitada em razão da presença do álcool.
O argumento de Simmel parece incidir principalmente naquilo que poderíamos chamar de aspectos morais do supereu sobretudo no que aponta para a vertente ligada à censura e ao interdito. Sabemos hoje que é somente através de uma leitura parcial do supereu que se pode cogitar sua diluição. Podemos dizer que Simmel estava tratando de um supereu concebido estritamente como instância reguladora. O supereu de que ele falava é o censor do eu, herdeiro do Édipo, que mantém a função de instância crítica vinculada à consciência moral. Focalizando dessa maneira, há sentido em se pensar que o supereu parece ser permeável ao tratamento tóxico. É como se a voz da consciência encontrasse sedação pela via de uma supressão (unterdrünkung) tóxica.
Mas se o censo comum pensa que se só se encontra deleite ou prazer no tóxico, não parece ser o que a clínica demonstra: ‘ora, sem contar com uma clínica sofisticada, mas somente com escutar o pouco de gosto, se não o pouco de estima que ele demonstra para com aquilo que consome.’ (Lecoeur, 1992), no alcoolista devemos reconhecer ‘que a posição do bebedor é aquela de uma fundamental submissão a um apelo, de uma obediência sem pertinência a uma ordem, aquela que articula a injunção ‘Beba’. O ato de beber, antes de ser um gozo, consiste em ceder às ordens de um imperativo de gozo. É por isso que o sujeito se torna aliviado, uma vez que a injunção para beber domestica a tirania do significante mestre, dando-lhe um conteúdo sensato... Submeter-se ao imperativo é, ao mesmo tempo destrui-lo.’ (Lecoeur, 1992). O sentido disto reside na medida em que se submete, o sujeito pacifica a ferocidade do supereu.
Vale também notar ainda como no alcoolismo uma repetição conduz o homem sempre ao mesmo copo, dessa maneira o produto estupefaciente toma a forma de um objeto privilegiado, o que adquire com Freud os contornos de um ‘casamento feliz’ com um produto. O casamento com a droga é um casamento que não deixa muito espaço para outros relacionamentos, a droga como objeto eleito, captura o sujeito levando-o a uma saturação em curto-circuito auto-erótico, num gozo solitário, segregado e segregante, mal visto pelo outro social. E neste ponto torna-se interessante tomar nota de uma breve observação de Jacques Lacan acerca da toxicomania.
A droga e o rompimento com o faz-pipi
Na Jornada de encerramento de estudos de cartéis da Escola Freudiana em 1975, Lacan fez um comentário paradigmático que permaneceu no horizonte das considerações teóricas acerca da clínica das toxicomanias. O psicanalista francês assim se pronuncia sobre a droga: "é por que eu falei do casamento que eu falo disso; tudo o que permite escapar a este casamento é evidentemente bem-vindo, daí o sucesso da droga por exemplo; não existe outra definição da droga que esta: é o que permite romper o casamento com o pequeno-pipi." (Lacan, 1976)
Mas o que Lacan estaria nos dizendo com isto? O que seria estar casado com o faz-pipi? Podemos fazer uma leitura da acomodação fálica, levando-a ao pé da letra, e assim pensá-la como a assunção pelo sujeito do casamento que deve contrair com seu próprio sexo. Um sujeito que está casado com seu sexo está referenciado a uma posição sexual. Isso tem toda a sorte de implicações no que diz respeito ao laço social, refletindo-se estruturalmente nas representações sociais. É o significante fálico que circunscreve um gozo fálico, tal circunscrição funciona como uma ordenação para os seres falantes na articulação dialética de sua estrutura e na sua posição sexuada. Podemos assim concluir que a acomodação ao significante fálico produz um posicionamento, um verdadeiro arranjo subjetivo para os sujeitos que foram normatizados pelo Édipo. É deste modo que perceber como se opera essa acomodação fálica pode ser importante para compreender a questão da toxicomania.
Este “rompimento do casamento com o pequeno-pipi”, que tipifica a toxicomania para Lacan, conduz a idéia de uma ruptura relativa à acomodação fálica.
A psicanálise nos esclarece que os sujeitos inscritos na função fálica são portadores de uma perda primordial de gozo . O toxicômano se depara com “não tudo do gozo é colocado sob a dimensão fálica” , de vez que ele se coloca como um demissionário do falo. “o gozo fálico é o que se sustenta nas relações de poder, de competição social e nas relações de trabalho que envolvem dinheiro, produção e poder. O toxicômano é aquele que se recusa a participar dessa relações, colocando-se à margem delas”. (Lemos, 2004)
Por usar uma via de tratamento que pretere do outro o toxicômano é considerado um sujeito que não se submete aos interditos, sendo inscrito em um mais-de-gozar absoluto. Vale a pena ressaltar as observações de Jacques Allain-Miller sobre oposição que se estabelece entre o gozo e o prazer que é essencial para que se possa entender as questões que aqui se apresentam. “O princípio do prazer aparece, de algum modo, como uma barreira natural ao gozo e, portanto, a oposição se estabelece entre a homeostase do prazer e os excessos constitutivos do gozo. Trata-se, ao mesmo tempo, da oposição entre o que é da ordem do bem – do lado do prazer – e aquilo que o gozo sempre comporta de mal” . (Miller, 2000)
Assim vão se delineando de forma mais clara as complexas relações do supereu com as toxicomanias. Elisa Alvarenga tem uma hipótese que contribui para estes questionamentos: "nas patologias contemporâneas, a eficácia do Nome-do-Pai é inversamente proporcional à severidade do Supereu." (Alvarenga, 2005)
Surge então o que parece ser um paradoxo importante na questão das toxicomanias, essa tentativa de ruptura, de insubmissão ao serviço sexual, artifício para marcar com o zero a inscrição do Nome-do-Pai, traz como retorno essa injunção supereu-óica. Devemos sempre nos lembrar que o supereu não é apenas uma lei reguladora, ele guarda os vestígios do isso de onde se engendrou com suas identificações que vociferam como vozes arquejantes, resíduo sonoro: - ‘Goza’!
Parece-me que esta consideração sobre o supereu e seus aspectos paradoxais encontram uma ressonância importante na clínica das toxicomanias, e para concluir rercorrerei novamente as contribuições de Alvarenga: - "Podemos talvez dizer que a clínica das toxicomanias é uma clínica do supereu: o que os toxicômanos chama de ‘fissura’ é uma das formas do imperativo de gozo do supereu”. (Alvarenga, 2005)
Fonte:
Alvarenga, E. – Do gozo do pai à melancolia in Papers del CA – Nova Epoca n º 11 novembro 2005 in www.wapol.org/pt/buscador/template.aspLacan, J. Journees D’etudes dês cartels de l’École freudienne de Paris. Maison de La chimie, Paris. Lettre de l’École freudienne, 1976, n 18. Lacan, J. O seminário: Livro 20 mais ainda, (1972-1973, 1985)Lecoeur, B. – O homem embriagado: estudos psicanalíticos sobre toxicomania e alcoolismo. CMT, Belo Horizonte, 1992
Lemos, I. – o gozo cínico do toxicômano – Mental: Revista de saúde mental e subjetividade da UNIPAC. V.2, n.3 novembro 2004 – Barbacena MG p.53
Miller, J. A. – Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana. N 26-27, abril, 2000.
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