sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Indicação e análise do filme: Sombras da noite

Sombras da noite
Em "Dark shadows", de Tim Burton, atores personificam pulsões e sentimentos presentes em nosso dia a dia

por Eduardo J. S. Honorato e Denise Deschamps


Texto retirado da Revista Psique Ed. 81 - 2012
Foto: Divulgação
Mais uma vez Tim Burton volta aos cinemas trazendo seu eterno e fiel representante: Johnny Depp faz Barnabas Collins (Thomas McDonell faz o personagem quando mais jovem). Sua esposa Helena Bonham Carter também veio, mais uma vez, junto, compor essa produção. Parceria Depp/Burton que deu certo em outros sete filmes (Edward Mãos de Tesoura, Ed Wood, A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça, Sweeney Todd – O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet, A Fantástica Fábrica de Chocolate, Alice no País das Maravilhas e na animação A Noiva Cadáver). Para os fãs do diretor e do ator, o filme foi um belo presente. Um resgate quase histórico de duas carreiras. Deep se mostrou um aficcionado dessa história criada para tv por Dan Curtis nos anos 60, interessante a delicadeza de Burton ao trazer, em uma cena, a da festa com a presença do grande Alice Cooper, o ator que representou Barnabas na produção mais antiga. Marca de Tim Burton, com toda certeza.
Ao longo do filme, nos vemos tocados pelo tema envelhecimento, presente de maneira sutil, mas insistentemente. Impossível não notar a presença de Michele Pfeifer nesta filmagem e não lembrar de sua corajosa atuação em outro filme já abordado por nós aqui nesta coluna, e que trata justamente desse tema, o “Chéri”.
Com uma fotografia próxima a do Sleppy Hollow (Cavaleiro Sem Cabeça) e com o estilo de conteúdo de Big Fish, Dark Shadows tem o roteiro de John August e Seth Grahame-Smith. Danny Elfman assina a trilha de canções originais. O filme traz à tona o mesmo tipo de humor estranho e sinistro, ao mesmo tempo “gentil”, que consagrou Burton. Um humor que leva às lágrimas e ao riso em alguns segundos, ou ao mesmo tempo. Traz mensagens fortes que levam a reflexões importantes, mesmo mascaradas pelas supostas cenas de terror e vampirismo. Embora tenha pretendido ser uma homenagem à série que esteve no ar de 1966 a 1971, no canal ABC, atualiza de forma brilhante algumas das não elaboradas questões que atravessam o sujeito em sua trajetória de vida.
O filme traz o mesmo tipo de humor estranho e sinistro, ao mesmo tempo “gentil”, que consagrou burton – humor que leva às lágrimas e ao riso em segundos
O susto de Barnabas Collins diante das marcantes mudanças da década de 70, como a impagável cena do seu contato com a tv, nos faz pensar em nossa trajetória e na angústia que atravessa a atualidade, frenético tempo modificado por geringonças tecnológicas que aproximam e afastam os vínculos humanos. Pela mais do que nunca enaltecida “juventude”, que é prolongada por descobertas de toda ordem, dessas que aumentam a expectativa de vida e a possibilidade de manter a máquina corpo jovem.
Foto: Divulgação
Enredo para grande elenco: uma família amaldiçoada há gerações, mas que se mantém por um único e forte vínculo - o nome
Michelle Pfeiffer vive a matriarca dos Collins, Elizabeth. Sua sina é ser de uma familia amaldiçoada e seu traço forte é a questão da maternidade. Fará de tudo para defender seu rebanho, com todas as forças. Trazendo também, no elenco, Jackie Earle Haley, Bella Heathcote (Josette e Vick), Eva Green (a bruxa Angelique), Jonny Lee Miller, Chloe Moretz (Carolyn) e o novato Gulliver McGrath (que esteve no belo A Invenção de Hugo Cabret e faz aqui o jovem sobrinho que vê fantasmas). Cada personagem vai compor uma delicada fotografia de alguns dos mais intensos dramas vivenciados pelo ser, sempre com um toque de humor que nos lembra o quanto a saída dos conflitos exige de cada um de nós, a nossa capacidade de não nos levarmos tão à sério. Há um toque de ridículo e cômico em qualquer sofrimento, como nos lembra, sempre, de outra maneira, Almodóvar, outro diretor das estocadas em cócegas. Temas dolorosos tratados por ângulos que nos fazem encarar o assombro com algum humor, trazer para perto questões que costumamos varrer para os porões de nossa consciência. Entre personagens que ganham aspectos de fábulas, Tim Burton vai nos contando uma história que acorda fantasmas, como foi acordado o, antes doce, Barnabas.
Família e amor
O personagem de Johnny Depp conta a história de uma família que enriqueceu, de um jovem cheio de bons sentimentos e amor, tendo sempre como ponto principal o vínculo familiar. Uma bruxa obcecada por ele, mata seus pais e sua amada Josette, quando então Barnabas Collins se lança à morte e é interrompido pela maldição que Angelique o marca, deixando-o para sempre nesse limite entre o que vive e o que está morto, transformado em vampiro é enterrado com correntes que amarram seu esquife. Será desenterrado nos anos 70 do século XX, muitos séculos depois da primeira parte da trama, em decorrência de escavações feitas por um empreendimento imobiliário, aliás característico da corrida na década em que o filme se passa. Nasce nessa década um modelo de vida urbana que hoje mostra mais do que nunca suas garras.
Uma família amaldiçoada há gerações, mas que se mantém por um único e forte vínculo: o nome. Isso nos remete à importância dos laços familiares básicos de pertencimento. Este mesmo vínculo forte mantém nosso personagem principal e faz dele um vampiro “do bem”. Bonzinho, sim. Bonzinho porque sofre por ser assim, por ter sido amaldiçoado, desejaria ser aquele que era antes de lançar-se ao precipício. Barnabas foi uma criança que aprendeu com seu pai o verdadeiro valor e significado de família e carrega isso consigo por centenas de anos. Um valor tão atrelado à formação de sua personalidade, que nem mesmo a maior das maldições consegue tirar isso dele. A família está acima de tudo, até mesmo do próprio bem estar e sentimentos.
De uma parte da história surge a importante pergunta: que amor moderno e vampiresco é esse que, sem pestanejar, destroi o objeto amado?
Ele reaparece depois de centenas de anos para resgatar sua família, tão maltratada por uma questão um tanto comum e presente nos dias de hoje: o tal amor vampiresco, o amor sem limites, compulsivo e obcecado. Amor destrutivo, fruto da pulsão de morte que outras vezes mencionamos em artigos aqui. Há no amor sempre seu par, há na paixão e na sexualidade seu tempero da agressividade, tempero que pode perder sua peneira e invadir totalmente o lugar de Eros, dos vínculos que agregam e constroem.
Angelique Bouchard, a bruxa, personifica este sentimento tão presente nos dias de hoje. um suposto sentimento de amor no qual se esconde uma pulsão de morte, em sua capacidade destrutiva, capaz de aniquilar o objeto amado caso não seja seu. Quantos casos vemos nos dias de hoje, seja no consultório, seja na mídia, nos quais o afeto se confunde com posse do objeto, em um narcisismo incontornável, e se transforma em ódio em uma questão de segundos. Que amor moderno e vampiresco é esse que, sem pestanejar, destroi o objeto amado? Será que é somente isso o que chamamos de amor na modernidade, será o modelo eleito? E caso seja predominante o que ele revela dos nossos tempos, que leitura histórica podemos fazer da relação do homem com seu mundo, com seus investimentos? 
Foto: Divulgação
Johnny Deep, um aficcionado: ator tornou-se fã da série que deu origem ao filme em perfeita parceria com Tim Burton
Como contraponto, um aspecto interessante, é a leitura do “amor como maldição”. Barnabas se sente amaldiçoado por amar e isso o faz sofrer por séculos. Seu amor é puro, em contraste ao amor de Angelique, que é vampiresco, doentio, obcecado, destrutivo e patológico. Algo tão atual que mesmo que não fossem os personagens, vampiros, entenderíamos seu grau em desvio, em anormalidade mórbida.
Ética e dinheiro
Helena Bonham Carter brinda-nos com mais um de seus papéis hilários, sempre controversos, mas tão marcantes. Nos apresentará a uma médica que abusa de medicamentos e é totalmente anti-ética. Nem tão distante assim dos dias de hoje, trazendo o próprio abuso no contato com os fármacos como uma das questões que cercam nosso conceito de bem estar na atualidade. Também marca com falas importantes a questão da juventude como uma busca incessante que carregamos, mais do que nunca, como amor, longevidade, maldição e busca desmedida.
Teremos ainda a típica adolescente e suas questões completamente centradas em suas necessidades, mas que é quem Barnabas enxerga que pode aconselhá-lo, talvez até por sua capacidade de ver de forma cortante as questões críticas que permeiam sua família. O pai que larga seus filhos em troca de uma polpuda quantia, e que nos faz pensar nesse valor maior que colocamos em algo, que se tornou símbolo humano para acesso à felicidade, dinheiro, modo de produção que atravessa o Inconsciente determinando valores que constroem nossos caminhos de vida.
Esse pai troca afeto por dinheiro, sem hesitar, duas vezes. E quantas cenas semelhantes adaptadas vemos nos dias de hoje? Quantas crianças são tratadas como moeda de troca em processos de separação, sem sequer levarem em conta suas subjetividades? Não podemos esquecer da importância da infância no processo de construção da personalidade, uma infância que é onde tudo pode ser mutável, tão necessária e determinante na construção da subjetividade.
Barnabas Collins traz para sua família a riqueza escondida, tanto em seus aspectos materiais, quanto como um resgate de um conceito do nome de família que foi sendo perdido através dos séculos, ponto que trouxe algumas modificações bastante positivas e outros que teriam aspectos mais desagregadores e com os quais tentamos nos equilibrar ainda. Se hoje o nome de família não determina tanto ou mais as divisões sociais de opressão, por outro deixa a angústia dessa opressão sem nome, como lei frouxa, na ausência de uma determinação mais patriarcal. A mãe representada por Pfeifer, confusa, mas que em última instância ainda tenta desempenhar seu papel de proteção e de agregar, unir em torno de algo sua família.
Foto: Divulgação
Vínculo familiar: troca de afeto por dinheiro é no círculo de familiares é também um dos pontos abordados pela filmagem de Burton
Marca dos tempos
Deliciosa a festa na qual Alice Cooper marca a indiferenciação de gênero, tão característica na moda que se inaugura nos anos setenta e que marca o “unissex”, estilo que lança uma leitura bastante interessante sobre um tempo no qual a diversidade passa a ser encarada como algo que nos constroi, e não que ameaça os grupos. Obviamente que isso muito mais enquanto ideia – na prática ainda estamos nos espartilhos. Barnabas diz, ao avistar o cantor: “Nunca vi uma mulher tão feia!” Risos!
Sem dúvida Angelique amarra toda a narrativa e a atriz imprime uma força a sua personagem, que auxilia naquilo que o personagem de Johnny Depp poderia deixar a desejar, em seus aspectos que misturam uma agressividade mal elaborada, um tanto difusa e cômica. O encontro dos dois promove sexualidade sempre anárquica, na qual o desejo destrói onde toca, como o quarto todo destruído após o encontro dos dois.
Crônica do tempo: durante todo o filme, nos vemos tocados pelo tema do envelhecimento, presente de maneira sutil, mas insistentemente a ponto de notarmos sua presença
Talvez o filme não seja mesmo um dos mais magníficos do diretor, como acusaram alguns críticos: às vezes é um tanto confuso, pelo que tenta abordar, mas não deixa de ser um bom divertimento, que acaba por tocar em sentimentos e emoções do desprevenido espectador, que ri, chora, se assusta e se recompõe, em frações de segundo, na mágica da força das imagens tão bem construídas.
Saímos com perguntas a nos cutucar, como a questão das novas configurações familiares, da abertura do conceito de família, desse grupo que nos inaugura no mundo, e com questionamentos como o de se nossas relações familiares hoje seriam tão fortes como a da familia de Barnabas, a ponto de se manterem por séculos? Estamos passando para as novas gerações esses sentimentos de pertencimento familiar, de uma possibilidade de uma união em torno de uma preservação? Lançada ao coletivo fica a pergunta se podemos ainda cuidar uns dos outros, guardar do passado o que importa e abrir novos rumos com o processo de mudança que fala de vida, de crescimento, de porvir? É preciso romper a maldição, que vençam o amor e os vínculos que mantêm a vida “viva”, e não sempre em suspensão, em estado de semi morte, vampiresca.




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