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Em relação ao autismo
existiram, ao longo do tempo, e coexistem, diversos critérios
classificatórios dentro da psicopatologia, quer na psiquiátrica, quer na
psicanalítica. Mas todos esses critérios concordam em que se trata de
um quadro no qual há dificuldades no reconhecimento entre a pessoa com
autismo e seu semelhante, a partir do qual o autismo aparece em suas
expressões mais típicas, tais como as descritas por Kanner[1],
e, de modo extenso, em configurações que convergem com outros quadros,
configurando o que atualmente se denomina como “espectro do autismo”.
No comparecimento inicial desse
quadro é possível verificar clinicamente que o bebê ou pequena criança
realiza uma exclusão ativa dos outros de seu circuito de satisfação,
mesmo daquelas pessoas mais implicadas em seus cuidados. Essa exclusão
ativa costuma ser precedida por uma baixa responsividade aos outros (o
que indica dificuldades precoces na constituição do bebê, que não são
exclusivas desse quadro). Posteriormente, começam a comparecer
dificuldades na aquisição da linguagem e na produção simbólica, tais
como brincar de faz de conta e participar dos hábitos da cultura. Em
lugar dessas produções e pela ausência das mesmas surgem estereotipias
que privilegiam uma autoestimulação sensorial.
A complexidade desse quadro exigiu
que as pesquisas e intervenções nesse campo não pudessem ser reduzidas a
uma única área do conhecimento, tornando necessária sua articulação.
Por isso a psicanálise não intervém nem avança no conhecimento sobre o
autismo de modo isolado e, portanto, a interdisciplinaridade é um dos
princípios que fazem parte da metodologia dos psicanalistas ao tratar de
pacientes com quadros de autismo. Isto é necessário dado que, com
grande frequência, o autismo aparece associado a outros problemas que
tornam imprescindível uma intervenção conjunta.
Nas diversas pesquisas médicas
realizadas por geneticistas, neurologistas e psiquiatras encontram-se
correlações entre a incidência de autismo e algumas patologias
orgânicas, mas não uma única causa que possibilite centrar seu
diagnóstico em exames orgânicos ou seu tratamento em uma solução
medicamentosa.
Se desde o aspecto orgânico esse é o
atual estado das coisas, há consenso sobre o benefício produzido por
tratamentos que intervenham na relação da pessoa com autismo com os
outros, possibilitando que suas produções possam ocorrer em uma
circulação familiar, escolar, social e cultural.
Nesse sentido, a psicanálise produz
sua contribuição ao intervir seguindo passo a passo o caminho que torna
possível a constituição psíquica, e assim também procede com pacientes
que nele tropeçam devido a patologias orgânicas.[2]
Dessa articulação do conhecimento
decorre que algumas das principais descobertas das neurociências e da
psicanálise sejam confluentes: a linguagem incide decisivamente em nossa
constituição, e a possibilidade de representar, na linguagem, o que nos
afeta no corpo, é o que nos tira de produções puramente reflexas e
automáticas, desde os primórdios da vida.
Por isso é central que possamos
interrogar: o que afeta, o que comove singularmente esse paciente? Para
onde se dirige seu olhar? Qual som se repete em sua vocalização? O que o
detém ou o lança em seu movimento? Uma vez localizadas essas
preferências o clínico busca possibilitar a passagem entre esse
fragmento perceptivo, no qual a pessoa com autismo se fixa, e a
possibilidade de extensão dessa produção que lhe permita compartilhar
com os outros.
Para aqueles que partem de uma concepção psicanalítica[3] o
sintoma não é uma falha a ser suprimida e sim uma resposta do paciente,
por isso partimos desse sintoma para a intervenção, propiciando, por
meio do tratamento, um contexto em que novas respostas possam advir. Ao
mesmo tempo em que os sintomas são reconhecidos e respeitados como uma
produção do paciente, eles podem assumir, ao longo do tratamento, um
caráter transitório, não enclausurando necessariamente alguém a um
quadro psicopatológico, fixando nele a sua identidade.
Embora se verifique uma relativa
uniformidade dos automatismos originários presentes no autismo, não são
todas iguais, as preferências ou pequenos interesses despertados para
cada pessoa com autismo. Reconhecer essas preferências como aberturas da
subjetivação é central para que possamos estendê-las.
Conhecer os passos da constituição
psíquica permite detectar dificuldades nesse caminho. Este é um
conhecimento produzido por psicanalistas que trabalham na clínica
interdisciplinar com bebês e pequenas crianças. Compartilhar e
transmitir esses critérios de detecção precoce de sofrimento psíquico
com profissionais que intervêm com toda e qualquer criança (tais como
pediatras, agentes de saúde e educadores), tem possibilitado nas últimas
décadas que pacientes com dificuldades cheguem com menor idade a
tratamento e, portanto, em um tempo em que tais dificuldades estão menos
fixadas e mais permeáveis à intervenção.
A infância, desde o ponto de vista da maturação, se caracteriza pela extrema plasticidade neuronal[4],
descoberta da neurobiologia, reveladora de que a formação da rede
neuronal depende da experiência de vida e que, com sua plasticidade, é
suscetível a inscrições dessas experiências.[5] Desde
o ponto de vista da constituição psíquica, Freud já afirmava que temos
bons motivos para acreditar que a capacidade de receber e reproduzir
impressões nunca é maior do que na infância.[6] Aí,
mais uma vez, as descobertas da clínica psicanalítica coincidem com as
das neurociências, que apontam, por meio desses conceitos, que nem tudo
está decidido em nosso organismo quando nascemos e que os processos
epigenéticos, as experiências de vida, têm nisso um papel decisivo.
Por isso, a idade em que uma intervenção ocorre conta, e é preciso intervir a tempo quando algo não vai bem sem precisar esperar a plena configuração de um quadro psicopatológico para proceder com um tratamento.
Ao nascer, todos contamos com os
elementos de uma história familiar e com uma herança genética já
estabelecidas. Porém ainda não está dado de antemão como o sujeito vai
se posicionar a partir dessas estruturas orgânicas e simbólicas. Diante
disso, algumas vertentes da psicanálise sublinham que, na infância, a
estrutura psíquica do sujeito não está decidida, testemunhando
experiências clínicas com crianças e bebês que chegam com quadros de
autismo ou outros quadros diagnosticados e que, ao longo do tratamento e
por efeito deste, apresentam mudanças de rumo nessa constituição em
andamento, não realizando um desfecho patológico. Outras vertentes da
psicanálise sublinham que, em função do tratamento, o que se realiza é
uma importante modulação nas construções de sentido, no modo de o
paciente estruturar-se em sua constituição psíquica e de situar-se na
vida.[7]
É preciso, nesse sentido, advertir
que as classificações psicopatológicas partem de um princípio
adultomorfo, do já constituído, que não é aplicável à infância de modo
geral e menos ainda ao tempo dos bebês. Realizar uma aposta na
constituição do sujeito é central na metodologia psicanalítica. Por
isso, invés de por em primeiro lugar o diagnóstico, é preciso destacar a
condição da infância como um tempo de abertura a inscrições.
Na metodologia psicanalítica com crianças, utilizamos em nossas avaliações alguns eixos centrais[8]:
1- Brincar e estatuto da fantasia
2- Corpo e imagem corporal
3- Fala e posição na linguagem
4- Reconhecimento das regras e posição diante da lei
Há produções que são
próprias do sujeito na infância e, portanto, centrais na intervenção e
avaliação psicanalítica. É considerando esses critérios que também se
produz a detecção e intervenção com crianças e bebês com autismo.
Desde a concepção
psicanalítica, é fundamental na formação do clínico conhecer os
diferentes momentos lógicos que fazem parte da constituição psíquica ao
longo da infância e o modo como eles comparecem, são dados a ver, em
suas diferentes produções de linguagem, psicomotricidade e aprendizagem
postas em cena em sua relação com os outros. É por conhecer os
diferentes momentos lógicos que o psicanalista intervém, podendo ir
buscar a criança/bebê ali onde ele está, sem que seja preciso, para
tratá-lo, introduzir um artificialismo técnico descontextualizado da
vida do paciente.
Se hoje em dia se sabe que a
constituição depende de processos epigenéticos, não estando estabelecida
apenas pela genética, nesses processos, a transmissão simbólica ocupa
um lugar decisivo, e os pais são protagonistas dessa transmissão, pois
eles detêm um saber consciente e inconsciente sobre o filho, no qual se
sustenta a singularidade do mesmo, mais além de qualquer diagnóstico. A
possibilidade de, junto ao psicanalista que o atende, desdobrar este
saber em questões, reflexões, preocupações produzidas a partir das
experiências cotidianas vividas com o filho é decisiva para as
transformações que podem advir ao longo do tratamento.
Há problemas orgânicos de
base que podem fazer com que um bebê apresente, no início da vida, uma
menor responsividade às convocatórias dos outros; em outros casos há
acontecimentos de vida que dificultam o estabelecimento da relação
primordial dos pais com o bebê. O fato é que a psicanálise não centra a
sua intervenção em decorrência desses fatores etiológicos (em uma falsa
questão de divisão orgânico-psíquica). Ao tratarmos de um bebê/criança
com comprovados problemas orgânicos de base, ou sem patologias orgânicas
detectadas, a aposta do clínico é a mesma: supomos que há ali um
sujeito e buscamos seus traços de interesse, pois tratamos do que pode
vir a fazer com o organismo que tem.
Os pais fazem parte dessa
aposta ao levar o filho a tratamento. E, portanto, a intervenção não
consiste nem em culpá-los[9],
nem em desculpabilizá-los pelas dificuldades que comparecem. Acima de
tudo eles estão intrinsecamente implicados nos cuidados do filho pela
sua condição de pais e, por isso, podem contar com a interlocução do
psicanalista, ora fazendo parte das sessões da criança (testemunhando o
trabalho que vai sendo realizado e participando dele); ora em sessões em
que elaboram situações em relação ao filho com o psicanalista que o
atende, a fim de, junto com este, poderem ir reconhecendo limites e
possibilidades que a criança coloca em sua produção e em seu modo de
situar-se com os outros.
A práxis da clínica psicanalítica
permitiu, ao longo do tempo, ir reconhecendo certos passos chaves na
direção do tratamento de bebês e crianças que apresentam uma exclusão
dos outros de seu campo[10].
Iremos referir-nos aqui à intervenção diante do autismo nesta
manifestação mais específica de exclusão dos outros de seu campo com o
estabelecimento de estereotipias e forte empobrecimento da linguagem ou
total ausência da mesma, pois se bem o conceito de “espectro autístico”
tenha criado uma categoria vasta em sua abrangência, tornou-a, em certa
medida, inespecífica, o que faz com que seja impossível unificar todos
os critérios terapêuticos relativos aos diferentes quadros que o
“espectro autístico” passou a comportar, já que cada um deles apresenta
pontos de intervenção específicos (no que se refere aos nomeados como
“autismo de alta performance”, “Síndrome de Asperger”, entre outras
formas).
Explicitamos a seguir esses passos chaves na direção do tratamento:
1- Reconhecer os automatismos da criança para
poder começar a fazer parte deles, ou seja, partimos de suas
estereotipias e não de uma oposição ou supressão das mesmas. Buscamos
ativamente começar a fazer parte dessas repetições fragmentárias, para
que o paciente nos permita aí entrar pelo gesto, olhar, voz,
musicalidade, movimento ou endereçamento corporal.
Isto porque a exclusão do outro que a
criança faz não é um superficial problema de comportamento a ser
corrigido. É uma profunda resposta que se produziu, é uma forma de estar
no mundo. Por isso não se pode suprimir essa resposta antes que se
constituam para ela (em tratamento) outras formas possíveis de estar
com os demais.
2- Reconhecer e sustentar as aberturas apresentadas
pelo paciente que se oferecem como permeabilidade à relação com os
outros em meio às estereotipias. Trata-se de ir em busca daquilo que
desperta o seu interesse estendendo, alargando, a partir deles, as
aberturas nas quais o paciente não realiza uma exclusão dos outros de
seu campo. Apresenta-se aí o surgimento de uma atenção conjunta em torno
do objeto de interesse.
3- Por meio desses dois primeiros aspectos sustenta-se um efeito de identificação.
É preciso dar lugar a uma identificação do outro com a criança
(rompendo o estranhamento que as estereotipias costumam causar, ou a
desistência dos investimentos diante da resposta de exclusão do outro de
seu circuito) a fim de possibilitar um campo em que a criança possa
entrar nessa identificação. Ou seja, trata-se de ir buscá-la onde ela
está procurando fazer parte de sua produção.
Esses efeitos de
identificação são claros quando a criança, em lugar de prestar atenção
no automatismo, passa a interessar-se mais pela descontinuidade que o
clínico introduziu ali, por exemplo, uma alteração de ritmo na
brincadeira. Isso revela que se abriu a brecha para que o outro faça
parte de seu circuito.
4- Possibilitar, a partir de tais aberturas, a produção de jogos constituintes do sujeito, para
que seja possível compartilhar com o outro pequenas cenas de brincar,
em que há um endereçamento e convocatória entre outro-criança, com o
olhar, voz, ritmicidade corporal, musicalidade, jogos gestuais.
A partir dessas pequenas
brincadeiras primordiais, que inicialmente comparecem como pequenas
cenas, a criança pode ir estendendo seu percurso de satisfação do
movimento estereotipado a cenas um pouco mais extensas em que
compartilha com o outro a expectativa e a satisfação lúdica, começando
não só a se sentir convocada, mas também a demandar, solicitar, propor a
retomada desses jogos àqueles com os quais os compartilha. Começam
assim a comparecer turnos na produção que revelam o interesse de fazer
com o outro e não só na repetição da cena em si.
5- O estabelecimento desses jogos permite introduzir alternâncias presença-ausência,
dentro-fora, aqui-lá. Esses jogos comportam a matriz fundamental da
linguagem e da representação pela qual pode se falar do que está ausente
e festejar o seu retorno (como no jogo do “Cadê? Achou!”) Por meio
dessa alternância o espaço deixa de ser contínuo e o tempo se
experimenta em uma tensão temporal entre a expectativa e a precipitação
(como no jogo do “um, dois, três e já!”). A criança passa a sustentar-se
e em uma série simbólica que lhe possibilita representar-se mesmo
diante da ruptura da continuidade, não precisando fixar-se no continuum
das estereotipias sem fim.
6- Em sexto lugar, a partir desses jogos trata-se de produzir uma extensão das cenas do brincar que passa a desdobrar-se em uma sequência em lugar de apresentar-se como a repetição fragmentária da estereotipia.
Os jogos de litoral, os jogos de
borda, os jogos de superfície, os jogos de lançar para que outro
recupere, os jogos de temporalidade intersubjetiva[11] são
formas de brincar que uma criança não realiza sozinha (diferentemente
do jogo simbólico nos quais já faz uma retomada do que lhe foi
transmitido). Esses são jogos que, para se produzirem, precisam ser
sustentados na relação com o outro, não ocorrem primeiramente com
brinquedos e sim com a voz, olhar, gesto, corpo do outro e da criança
implicando um prazer compartilhado. Mesmo que ali haja esses
objetos-brinquedos eles não são o aspecto central da cena, e sim o
compartilhar.
Tais jogos são fundamentais para toda
e qualquer criança, pois possibilitam uma incidência, uma articulação,
entre as percepções que afetam o corpo e a linguagem. Por isso eles
também se tornam decisivos na metodologia de intervenção com bebês e
crianças que apresentam quadros de autismo na aposta de sua
constituição.[12]
Por isso a intervenção não consiste
nem em um silêncio que espera, nem tampouco em uma massa de palavras
dirigidas à criança, mas em uma extrema delicadeza do clínico para não
ser invasivo e, ao mesmo tempo, ser bastante atento, disponível e
preciso em sua intervenção para localizar, sustentar e produzir as
pequenas brechas iniciais de abertura à relação com o outro pelo qual a
criança pode vir a servir-se da linguagem para nela se representar. Por
isso, a intervenção toma como referência esses passos chaves na direção
do tratamento da clínica com o autismo, procedendo com os mesmos de modo
profundamente singular, considerando os tempos e partindo dos
interesses de cada paciente.
Diante de manifestações
bastante avançadas do quadro, e em idades mais tardias, a direção do
tratamento também apóia-se naquilo que o autista pode colocar em cena de
mais singular. O método, por sua vez, pode sofrer variações, levantando
a necessidade de lançar mão de intervenções que lhe permitam, ao menos,
alguma adaptação, tais como: a oferta de códigos de referência para o
paciente, estabelecendo-lhes rotinas organizadoras para defender-se de
angústias avassaladoras, emprestando-lhe signos que lhe permitam
minimamente posicionar-se diante dos demais. Mas, partir desse princípio
terapêutico em épocas precoces da vida, quando a construção psíquica
ainda está ocorrendo ou está em seus tenros primórdios, é não dar ao
menos uma chance a essa constituição. Ainda que nem sempre ela venha a
ser possível não há por que, de início, descartar essa aposta.
Participantes e colaboradores diretos do texto: Julieta
Jerusalinsky (NEPPC/SP; APPOA/RS; Centro Lydia Coriat – Clinica
Interdisciplinar da infância e adolescência/RS; Clinica Interdisciplinar
Mauro Spinelli/SP); Alfredo Jerusalinsky (APPOA/RS; ALI; Centro Lydia
Coriat – clínica interdisciplinar da infância e da adolescência/RS e
BsAs); Alicia Lisondo (GEP-Campinas/ SBPSP); Ana Beatriz Freire (UFRJ);
Claudia Mascarenhas (Espaço Moebius; Instituto Viva Infância/BA);
Daniela Teperman (NEPPC/SP); Heloisa Prado Telles (EBPSP); Ilana Katz
(NEPPC/SP); Luciana Pires (IPUSP); Maria Prisce Cleto Telles Chaves
(ABENEPI/RJ); Mariangela Mendes de Almeida (SBPSP/UNIFESP); Patricia
Cardoso de Mello (SBPSP e IFA/ SP); Paula Pimenta (EBP/MG).
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