sexta-feira, 18 de setembro de 2015

CineFreudiano: Mary e Max / Um vidro de lágrimas e o poder da transferência.

do site CineFreudiano

de  Mirelle Araújo
Pra começar preciso dizer que é impressionante como a gente esquece, logo após os primeiros minutos de filme, que é um desenho, que é um filme de animação em stop motion.
Quis pensar esse filme com vocês pela sutileza com que ele trata de assuntos tão graves, tão violentos: solidão, depressão, sexualidade, suicídio, desamparo, compulsão, drogadição, bullying, fobia, síndrome de asperger. E as descobertas infantis de como funciona o mundo.
Cometi o ato filosoficamente esperançoso de lançar mão dele numa atividade em sala de aula para crianças agitadas de 10 anos, numa certa escola de ensino fundamental em Goiânia; foi um desastre. Aquilo podia até parecer desenho animado, e por isso achei que os capturaria, mas foi no só depois que percebi o quanto era “des-animado”, no melhor sentido do termo, se é que me entendem. Aquilo não era coisa pra criança(?). Um filme praticamente todo narrado, com alguns poucos diálogos, com um humor nada convencional e profundamente filosófico. Coisa talvez exigente demais pra quem está mergulhado no automaton do dia a dia, ainda mais para aqueles jovenzinhos tão jovens, tão touchscreen, contando os segundos para o sinal bater e saírem correndo e alvoroçados da sala de aula, onde tinham uma professora metida a criação de Ziraldo “professora maluquinha”. Fiquei murchinhaaaa depois que eles se foram. Pensando o quanto aquilo era bonito de se ver e de se entender E não tinha funcionado.
De onde vêm os bebês?”, é o que Mary pergunta em uma das cartas que envia ao novo amigo desconhecido “sorteado” no catálogo telefônico   É claro que essa pergunta infantil vai nos remeter a todas aquelas curiosidades infantis tão exploradas por Freud ao analisar os pequenos, fonte de boa parte da construção da psicanálise. Mas esse é um filme pintado com os tons da Melancolia e que vai falar, à primeira vista, de amizade e da força desse laço. A ‘amizade diferente’, como é intitulada, enlaçada via cartas nos remete à comparações com o que vivemos hoje na nova forma virtual de nos relacionarmos ou na nova forma virtual que inventamos de não nos relacionarmos.
Mary e Max também nunca se viram, se não por cartas e objetos enviados, e por duas décadas se corresponderam dando bastante tijolo e cimento ao imaginário. Talvez o que tenha me frustrado tanto é que as crianças da sala de aula do ensino fundamental 2 ainda não podiam ver o que a minha criança crescida via ali, à segunda vista: um verdadeiro tratado sobre a solidão.
Mas antes de qualquer coisa, e foi o que me capturou, é um filme que vai nos falar da necessidade de falar de si e do que isso realiza enquanto processo, o que vai sempre nos remeter àquilo em que está a nossa principal crença enquanto analistas, a talking cure, a cura pela fala. A saber, a fala ao analista, aqui ausente. Apesar disso, lá estavam eles, associando livremente.
Então temos a australiana de 8 anos e o novaiorquino de 44. Sépia e Cinza. E o que faz a história ainda mais curiosa é a improbabilidade desta conexão, mas que acha encaixe, faz encontro, quando esbarram no que lhes é comum, a falta, personificada ali pelo que estou chamando de solidão. Acabaram encontrando um no outro o apoio que precisavam para serem aceitos como são, em sua alteridade.
Isso vai comparecer para os dois personagens, apesar das estruturas psíquicas distintas (neurose e psicose) como um espelhamento, e aí estamos mesmo falando de identificação. E é Impossível que também nós não nos identifiquemos com eles, porque estão ali falando é do nosso buraco, de temas conhecidos e experimentados na subjetividade de cada um. Mas não é sempre isso que a arte nos propõe? Que você esteja ali diante dela com o seu UM e que se perca nisso e, ao mesmo tempo, se encaixe. Cada um com sua manchinha de cocô menor ou maior, com os seus quadris implicados, suas compulsões, medos e desejos etc e tal. Assim, essa amizade se consolida em 20 anos por cartas que atravessam mares, cheias de questões existenciais e muitos doces.
Na tentativa de dar sentido às próprias angústias de inadequação, cada qual em um contexto, é o desejo de cada um que os move, comparecendo como causa do encontro de suas vivências. Impossível também não fazer um paralelo com a contemporaneidade onde todos estão conectados e cada vez mais solitários. Se o imaginário é também o paraíso das idealizações, não só das identificações, o que “quebra o espelho” de Max é a transformação de Mary que, ao deixar de ser criança, profissionaliza-se, escreve um livro sobre “ele”, ou sobre a “doença dele” e o envia. Para ela, um ato de amor, para ele uma pedra arremessada neste espelho, um insulto, uma queda, uma decepção, um corte.
Nesse momento, para Max, Mary deixa de estar à frente, para estar de fora, na vitrine, produzindo um estudo sobre o outro que ele é. Neste ato ele é deslocado do lugar de melhor amigo, daquele que corresponde, o “correspondente”, para estar no lugar de objeto de estudo. Aparece um terceiro que vem como discurso da mestre Mary. E isto é o que não estava “combinado”. E sabemos como isso pode perturbar um Aspie, como pode ser perigoso o que está fora da margem de controle dele, o que está fora do ritual, o que desorganiza o “seu método”.
E quem é Mary? Mary é um “acidente”. É assim que é dita pela mãe. Cansada de ser ignorada pelos seus genitores, cada um afundado em seu manjar de drogas, é ela quem inaugura esta conexão ao escolher aleatoriamente, em um catálogo telefônico, o endereço de Max. Resolve que será para esse sujeito, de quem nada sabe, pra quem irá demandar suas dúvidas e confiar seus medos e segredos. Todos eles. Tão tal e qual fazemos quando elegemos um analista, para quem vamos levar o nosso vidrinho (de lágrimas).
Max está às voltas com seu Asperger, com sua maneira particular de perceber o mundo e consequente entrave em fazer laços sociais, vai se arranjando com seus chocolates também em um mundinho particular, mas é tocado por Mary (essa que apareceu para perguntar e para lhe “escutar”) de tal forma que isso passa a ser o centro de sua vida isolada. E nada o define melhor que sua própria definição: “A vida de todo mundo é como uma longa calçada. Algumas são bem pavimentadas, outras são como a minha: têm fendas, cascas de banana e bitucas de cigarro”. Ele sabe o que é ser um Max e diz: “Eu gosto de ser um Aspie.”
Mas o encontro de Mary e Max, que é um encontro de amor, é uma batida tão violenta que leva Max à loucura, literalmente. Ao mesmo tempo que o salva. Até o problema das lágrimas, Mary deu um jeito de “resolver”. Alguém consegue imaginar uma cena mais poética do que essa, quando ela o envia suas lágrimas em pote de vidro? Lágrimas doadas para Max, que não podia chorar É o real, ali tentando se ajeitar em gesto. Esta é uma cena que eu chamei de “paralisante”. Poderia até terminar o filme ali. Mas ele segue
E se amar é dar o que não se tem, como nos diz Lacan, foi isso que fez Max. No final, ao se aproximar literalmente, fisicamente dele, Mary fica estarrecida com a foto dela no espelho (uma bela metáfora do que lhes falei  o que chamei de espelhamento) e depois percebe que ela está por toda casa, por todos os espaços. Menos na máquina de escrever, veículo que possibilitou o encontro entre os dois, que teve um M arrancado, marcando assim de forma tão rigorosa a falta. A falta como presença daquilo que não cansa de se repetir.
No final ao encontrá-lo ali morto, Mary chora também de alegria. Ali são dois encontros. O encontro com Max e consigo mesma. O encontro de uma vida. Vale a pena ver essa obra, nem que seja pela carta final que Max escreve à Mary.
E o autor encerra com essa frase “Deus nos dá familiaresGraças a Deus que podemos escolher nossos amigos”.  E todos nós dizemos baixinho : “amém”.
A Psicanálise é, em essência, uma cura pelo amor.” Freud
O resto é sempre no destino humano, fecundo.” Lacan
É preciso poder compartilhar sua lata de leite condensado.” Mirelle Araújo
Trailer Oficial

Mirelle Araújo é Psicanalista membro do NAEPP -Núcleo de Atendimento, Estudo e Pesquisa em Psicanálise, Goiânia-Go- Graduada em Psicologia pela Puc Goiás; pós-graduada em Psicanálise pela Universidade Santa Úrsula-RJ; pós-graduação em Neuropsicologia pela USP; pós-graduada em Psicodiagnóstico Infantil pelo Instituto Persona, Goiânia-Go. Site: www.naepp.com.br

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