Texto retirado da revista Psique. ed-66.2011
Por Andreia Calçada
Será que o afago de um bicho de estimação, um abanar de rabo do cachorro ou um miado do gato podem substituir o afeto oriundo do relacionamento com um ser humano? O animal não discute, pode ser punido sem maiores problemas e provavelmente não vai trocar de dono. Controlá-lo é muito mais fácil e confortável. Mas isso basta?
O artigo aqui proposto foi pautado em pesquisa realizada em diversos países pela Ipsos/Reuters, que aponta que um em cada cinco cidadãos do mundo prefere passar o Dia dos Namorados (comemorado em 12 de junho no Brasil e 14 de fevereiro em outros países) com o animal de estimação em vez do parceiro. A Ipsos é referência mundial em pesquisa de mercado e interpretação de dados. Criada em 1975 na França, presente no Brasil desde 1997, consolidou-se como uma das maiores empresas de pesquisa do mundo.
A pesquisa, realizada globalmente, aponta que um em cada cinco adultos (21%) em 23 países (que representam 75% do PIB mundial), se pudesse optar, passaria o dia com sua mascote, e não com seus companheiros. Mas 79% discordam e preferem passar o dia com seus parceiros ao animal de estimação. No Brasil, o número chega a 18%, ficando atrás da Argentina e da Espanha, por exemplo.Contrariando o estereótipo, a pesquisa revelou que não é o sexo que determina essa vontade, mas sim a idade. Os mais velhos estão menos propensos a trocar o parceiro pelo animal de estimação.
A pesquisa realizada com mais de 24 mil adultos - mais de mil por país - mostra que os entrevistados da Turquia (49%) são os mais propensos a passar o tempo com um animal de estimação e não com o parceiro, seguidos pelos da Índia (41%), do Japão (30%), da China (29%), dos EUA (27%) e da Austrália (25%).
Por outro lado, na lista dos países onde as pessoas estão menos dispostas a passar o dia com um animal de estimação e não com os seus parceiros, aparece em primeiro lugar a França (10%), seguida por México (11%), Holanda (12%) e Hungria (12%).
A pesquisa ainda revela que os que estão menos propensos a passar o Dia dos Namorados com os animais de estimação deixando de lado os parceiros são homens (79%) e mulheres (70%), com mais de 50 anos (86%), seguidos por aqueles que têm entre 35 e 54 anos (82%) e dos que estão abaixo de 35 (75%), de classe média (80%) e alta (80%), seguidos pela classe baixa (76%).
Apesar do número de pessoas que prefere, claro, passar o Dia dos Namorados com o companheiro ser maioria, o que nos chama a atenção nesta pesquisa é a elevada estimativa dos que não hesitam em trocar a companhia do parceiro pelo fiel bicho de estimação.Em Psicologia e Psiquiatria, o Narcisismo excessivo se configura no que chamamos de Transtorno da Personalidade Narcisista. Talvez aqui, relacionar-se apenas com seu bicho de estimação seja uma boa saída.
Grandes benefícios
De acordo com a literatura pertinente, a companhia dos animais pode trazer benefícios para a saúde e para o estado emocional do ser humano. Há comprovação científica na ajuda do controle do estresse, da pressão arterial e de problemas cardiovasculares.
Tem grande importância para os idosos, pois se deixam tocar e acariciar. São indicados em casos de depressão, tornando-se motivação de vida e ocupando vazios existenciais na vida das pessoas. Estudos demonstram que esta relação aumenta a produção de endorfina, o que melhora sentimentos depressivos. Diminui ainda a percepção "da dor" e aumenta o número de células de defesa do organismo
A convivência com bichinhos de estimação ensina as crianças a respeitarem a natureza, além de torná-las mais calmas e carinhosas. Aquelas com problemas psicológicos também se beneficiam deste contato. Pesquisadores já demonstraram que a posse de um animal de estimação durante a infância é uma influência extremamente importante para a construção de uma conduta adulta favorável e para alcançar um ótimo desenvolvimento social.
Sem troca mútua
Ressalto que não há aqui julgamento de valor, mas sim de vivências inerentes a uma época que traz, sim, a dificuldade de viver a intimidade. É comum hoje ver crianças, adolescentes e adultos jovens brincando ou sentados juntos, porém, individualmente vinculados aos seus games ou celulares, buscando e-mails e acessando suas redes sociais. Sem palavras. Sem a observação do outro. Muitas vezes, sem a observação sobre si mesmo. A vida se modifica, o tempo corre e não dá tempo para troca mútua. E quando estamos juntos, a tecnologia media a relação. Será isto preconceito de alguém em torno dos 40? Será que isso se vincula ao resultado da pesquisa?
Relacionar-se é difícil e dá muito trabalho e, além disso, pode gerar dor e sofrimento. Aliás, muitas vezes é o que acontece. É natural. A dor do término, da rejeição, da traição, mas há também a dor da mudança, do crescimento que pode ser alcançado dentro de um relacionamento. A ameaça do abandono e o medo de envolvimento podem ser um dos principais motivos para se querer passar o Dia dos Namorados apenas com o animal de estimação. Nada contra esse desejo, desde que isso seja uma exceção à regra, e não uma constante e feita de forma consciente. Defender-se do amor gera desamor contínuo e infelicidade.
Vaidade da exposição
Impossível não remeter, ao falar deste assunto, ao Hedonismo e ao Narcisismo, que minimamente a própria cultura incute e expande. A beleza cultuada ao extremo, a vaidade que em algumas pessoas precisa ser mostrada pelo carro maior e mais caro, roupas e acessórios. A necessidade muitas vezes de mostrar ostentação nas redes sociais, por meio de fotos de viagens e conquistas anunciadas. Até mesmo pela quantidade de amigos que se tem no Facebook. A competitividade e o individualismo exacerbados no capitalismo fazem que as pessoas se entorpeçam pela imagem de poder e ali se perdem suas relações.
O Hedonismo é a doutrina que afirma ser o prazer individual e imediato o supremo bem da vida humana. O Hedonismo moderno procura fundamentar-se numa concepção mais ampla de prazer, entendida como felicidade para o maior número de pessoas. Portanto, o prazer individual se estabelece e prepondera sobre o outro. Se há conflito na relação, esta deve ser colocada de lado.
O termo narcisismo e o nome Narciso derivam da palavra grega narke, que significa "entorpecido", de onde também vem a palavra narcótico. Assim, para os gregos, Narciso simbolizava a vaidade e a insensibilidade, visto que ele era emocionalmente entorpecido às solicitações daqueles que se apaixonaram por sua beleza.
O narcisista apresenta dificuldades em estabelecer vínculos reais, baseados em relações de troca, em que a empatia se mostra presente numa postura de respeito e consideração ao outro. Suas relações normalmente são superficiais e de controle, e as principais manobras acontecem por meio do poder de manipulação e persuasão, ou poder de coerção e intimidação. Contrariá-lo pode gerar graves conflitos. Preservar a própria individualidade de quem convive com eles é um grande desafio. Normalmente, seus parceiros são pessoas submissas, com baixa autoestima. O outro existe para satisfazer suas necessidades, mesmo que para isto precise feri-las (em vários sentidos). Em Psicologia e Psiquiatria, o Narcisismo excessivo se configura no que chamamos de Transtorno da Personalidade Narcisista. Talvez aqui, relacionar-se apenas com seu bicho de estimação seja uma boa saída. Os bichos de estimação não reclamam e dificilmente haverá conflitos nesta relação.
Freud acreditava que algum nível de Narcisismo constitui uma parte do desenvolvimento humano. Em Psicanálise, o Narcisismo representa um modo particular de relação com a sexualidade, sendo um conceito crucial para a formação da teoria psicanalítica tal qual conhecemos hoje. Portanto, o Narcisismo não é apenas uma condição patológica, mas também importante na estruturação da personalidade, um protetor do psiquismo. Constitui uma imagem integrada de si mesmo. Vai além do autoerotismo para fornecer a integração de uma figura positiva e diferenciada do outro.
Querer conviver com animais é importante, porém, o animal não pode ser substituto das relações humanas. Trocas afetivas amorosas são fundamentais para o crescimento pessoal e social e não podem ser substituídas de forma rígida e inflexível pelo convívio com o animal, correndo o risco de se transformar em defesa neurótica contra o medo do abandono. Amar é risco, se doar é risco, ouvir e ser ouvido é sempre bom.
Olhar as relações como aprendizado talvez seja uma boa forma de continuar investindo e fazendo a sua parte. "Que seja eterno enquanto dure"! Mas com qualidade e equilíbrio. Equilíbrio não só com relação à necessidade desmedida de buscar prazer, mas de buscar dar prazer ao outro. Que o mito de Narciso seja metáfora útil para que não definhemos ao beber a própria imagem, isolados e acompanhados apenas do bichano da vez. Olhe a si mesmo, mas olhe também àquele que está ao seu lado, com suas necessidades, defeitos e beleza.
Nenhum comentário:
Postar um comentário