Texto retirado da revista Mente e Cérebro. ed. 155- dez.2005. O texto é grande mas vale a pena ler... No cinema, os distúrbios psíquicos, antes estereotipados, passaram de expediente narrativo a fenômeno passível de compreensão. | ||||||
por Gianbruno Guerrerio | ||||||
"O olhar insistente do cinema para os distúrbios psíquicos", explica Paolo Pancheri, professor de psiquiatria na Universidade La Sapienza, de Roma, "deve-se ao fato de que esses distúrbios têm repercussão profunda nas pessoas, assim como a violência. Os distúrbios mentais mostrados na tela remetem àquele fundo patológico, de loucura ou de alteração, que está presente em todos nós." A observação explica o binômio loucura-violência, que permite juntar dois aspectos de grande impacto no público num só produto. A questão é importante, pois se, de um lado, os filmes que representam o distúrbio mental de uma determinada maneira são índice de um imaginário coletivo, de outro, o retrato cinematográfico de uma doença pode reforçar ou modificar idéias estereotipadas. Em primeiro lugar, há o estereótipo que identifica quem sofre de distúrbios psíquicos como um perigo para a integridade dos outros. Esse ponto de vista nos leva a desconfiar não só dos doentes, mas também da psiquiatria, e a nos mantermos longe dela mesmo quando precisamos de ajuda, por medo de sermos tachados do mesmo modo. Essa é, acima de tudo, uma noção equivocada, pois numerosas pesquisas têm demonstrado que a taxa de crimes violentos cometidos por pessoas que sofrem de distúrbios psíquicos não é superior àquela da população em geral. Amplo estudo feito nos Estados Unidos (publicado em agosto de 2004 nos Archives of General Psychiatry), demonstra que, ao contrário, quem sofre de graves distúrbios mentais é 12 vezes mais vulnerável a crimes violentos que a média da população. Entre os filmes recentes, um exemplo negativo de como o tema pode ser tratado é Eu, eu mesmo & Irene (2000), de Bob e Peter Farrelly, que com a desculpa (na realidade, com o agravante) de ser cômico repõe os piores preconceitos sobre os loucos, chamados algumas vezes de "esquizo", outras de "psicopata", num confuso acúmulo de sintomas e comportamentos, o que até induziu associações psiquiátricas e de familiares de pacientes psiquiátricos de Grã-Bretanha, Estados Unidos e Austrália a formalizar um protesto público quando o filme começou a ser exibido nos cinemas. Nos últimos anos, a representação dos distúrbios psiquiá-tricos, assim como da psiquiatria em geral, mudou de modo significativo. Tanto é verdade que a associação de transtornos a um comportamento perigoso ou violento tornou-se, nos últimos anos, muito menos marcada e tende a aparecer apenas em filmes comerciais. "É inegável", observa Pancheri, "que hoje certos estereótipos já estão superados. Um exemplo disso é um filme que, do ponto de vista da psiquiatria, considero uma obra-prima: Uma mente brilhante, de Ron Howard. É absolutamente impecável do ponto de vista clínico, e conseguiu atrair muitos espectadores. O que significa que houve uma transformação na sensibilidade das pessoas." A mudança não se deu de uma vez só. Nos primórdios do cinema, o paciente psiquiátrico era simplesmente o "louco", representado por tipos pouco realistas, quase caricaturais. Só depois da metade da década de 30, com a difusão da psicanálise, começou a adquirir dignidade. Explorada por muitos diretores de cinema, a tendência de inspirar-se na psicanálise talvez tenha encontrado expressão mais completa em Hitchcock, que a ela recorreu várias vezes, em filmes como Um corpo que cai (1958), Marnie, confissões de uma ladra (1964), Psicose (1960) ou Quando fala o coração (1945), no qual, depois dos créditos iniciais, informa-se o seguinte: "O presente filme discorre sobre a psicanálise, o método com o qual a ciência moderna trata dos distúrbios da psique. (.) Quando os complexos que afetam a mente perturbada são descobertos e interpretados, o paciente melhora, e os demônios da loucura desaparecem". Neste filme a descrição do distúrbio psíquico é incompleta e depende do andamento "policial" da narrativa. A descoberta de traumas marcados na memória permite que, de uma hora para outra, o paciente desperte para uma vida nova como se acordasse de um pesadelo. Quando fala o coração fundou um modelo narrativo que foi repetido sistematicamente em inúmeros filmes. Ao contrário da visão anterior da doença psíquica como objeto insondável e tenebroso, os filmes de Hitchcock propõem uma perspectiva de terapia racional. Esse aspecto não pode ser subestimado, embora nos seus filmes o quadro dos sintomas seja genérico e a terapia se reduza, invariavelmente, a uma versão acanhada e simplista da "terapia da palavra". É notável a capacidade do cineasta de criar ambientes oníricos em que se desfazem os limites entre realidade e imaginação. A cena do sonho em Quando fala o coração, para a qual Hitchcock consultou Salvador Dalí, permanece como uma das mais bem feitas do gênero na história do cinema, a despeito dos incríveis progressos dos efeitos especiais. A representação da experiência de quem é acometido por uma doença psiquiátrica colocou a duras provas os cineastas, mesmo os que não pretendiam usar o louco apenas para criar um clima de tensão e de imprevisibilidade. De fato, o problema se apresenta em filmes de alto nível, como Um estranho no ninho (1975), de Milos Forman. "É um filme muito bonito", observa Pancheri. "Por ter sido produzido numa época de crise e mudança, fazia uma crítica pertinente, ainda que extremista, aos hospitais psiquiátricos." O ataque era exagerado porque, ao condenar riscos e abomináveis conseqüências do modelo de segregação do doente numa "instituição total" como o manicômio, acabava por negar qualquer valor à psiquiatria, à essência científica do tratamento. O cineasta apresentava a loucura como expressão natural de uma personalidade anticonformista, que, numa sociedade mais tolerante, não teria problemas. Negava-se, assim, implicitamente, o profundo sofrimento que acompanha a vida dos doentes psiquiátricos A mudança na sensibilidade dos cineastas e do público manifesta-se pela renúncia a usar a loucura como puro instrumento de suspense, mas também com a tentativa de mostrar, de modo empático, o drama existencial do paciente e atenção à especificidade do distúrbio psíquico descrito, renunciando a representar um único personagem com sintomas e comportamento de estados patológicos muito diversos. Tentação esta na qual caíram alguns mestres do cinema, como Roman Polanski em Repulsa ao sexo (1965). No filme, de um lado descreve-se magistralmente uma esquizofrenia paranóide e o progressivo e angustiante distanciamento da realidade da protagonista, mas de outro aparecem uma atípica explosão de violência e, no centro da trama, um tema sexual que pode induzir a mal-entendidos. Ao contrário, Através de um espelho (1961), de Ingmar Bergman, consegue compor um quadro realista da dor ligada à esquizofrenia. Mais ou menos na mesma época, ao pessimismo que caracteriza a obra do cineasta sueco, contrapõe-se a visão positiva de Julieta dos espíritos (1965), de Federico Fellini, cuja protagonista aprende a conviver com "vozes", que deixam de ser hostis e se tornam amigas. Essas tentativas de retrato fiel e "de dentro" do mundo da psicose permaneceram por muito tempo casos raros, até mesmo isolados. A lista dos filmes que, implícita ou explicitamente, referem-se ao tema é longa. Tem-se a impressão de que o percurso que conduziu a loucura de expediente narrativo a ponto focal da narração tenha acompanhado, passo a passo, sua transformação de algo radicalmente "outro" a um evento do nosso mundo, passível de ser compreendido e explicado, ainda que com dificuldade. Em outros termos, a multiplicação das possibilidades terapêuticas, da década de 50 até hoje, e um melhor conhecimento de sua eficácia forneceram a diretores e roteiristas a sensação de que a viagem pelas terras da alucinação não se dá, fatalmente, sem retorno e que talvez seja realmente possível explorá-las. Exemplares, sob esse aspecto, são Spider (2002), de David Cronemberg e Insônia (2004), de Brad Anderson, filmes que - com formas e resultados diferentes - encenam os pesadelos de duas pessoas acometidas pela psicose. Ou Shine (1996), de Scott Hicks, que analisa com lucidez e rigor a progressiva erosão das relações familiares, sociais e de trabalho do protagonista. Pouco importa que o final feliz seja atribuído à potência milagrosa do amor e não às terapias (como acontece também em Uma mente brilhante). Não se trata de excluir a referência à loucura das possibilidades dos autores, em nome do politicamente correto ou, melhor, do clinicamente correto. A licença poética é bem-vinda, desde que não deforme com estereótipos negativos a figura de quem sofre com a doença psíquica. Conciliar uma representação realista da loucura com as exigências narrativas é possível, como demonstra, por exemplo, Clube da luta (1999), de David Fincher, cujo protagonista apresenta comportamentos violentos e trabalha como executivo, vivendo uma existência dividida (situação freqüente no cinema, mas rara, no limite do improvável, do ponto de vista clínico). Mas parece claro que o diretor está falando de algo bem diferente, da situação das pessoas comuns, e do homem em particular, em nossa sociedade. Se a loucura se mostra um grande tema cinematográfico, por outro lado psiquiatras e psicoterapeutas sempre se interessaram pela sétima arte. Isso ocorre, entre outros motivos, pela afinidade, percebida desde o início do século XX, entre a linguagem não-verbal do cinema e os sonhos. Em ambos os casos, as imagens prescindem da seqüência real dos acontecimentos. A montagem cinematográfica altera tempos e espaços da ação recorrendo a artifícios como a abstração, a ambigüidade, a estratificação, a condensação e o deslocamento, os mesmos mecanismos que o inconsciente usa para exprimir-se. Mas essa é outra história. |
sábado, 25 de junho de 2011
Loucura em cena.
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