sexta-feira, 8 de julho de 2011

Canibalismo.




O texto é comprido mas vale a pena, devo dizer que o melhor esta ao final, quando começa pervesão sádica.

Texto retirado da revista Mente & Cérebro, ed. 177, outubro de 2007. E considerações minhas (Andréia Miglioranza Marin) sobre o tema ao final.

Canibalismo: da cultura à perversão
O ato de comer carne humana, praticado por culturas ancestrais e durante alguns períodos de extrema escassez, representa a concretização de fantasias sexuais sádicas que indicam problemas na constituição da identidade
por Nahlah Saimeh

técnico de informática alemão Armin Weives era um homem comum, parecia pacífico e solitário. Sua vida mudou da água para o vinho depois de um bizarro jantar, que lhe rendeu prisão perpétua cinco anos depois. O prato principal foi o pênis do engenheiro Bernd Juergen Brandes, que, aliás, também degustou a macabra iguaria, antes de ser assassinado, esquartejado, comido paulatinamente nos dias seguintes. A história começara meses antes, quando Weives colocou um anúncio na internet procurando alguém que quisesse ser morto e devorado. Brandes mostrou-se disposto e concordou em ter o membro sexual amputado, flambado e servido antes do suspiro final. Todo o ritual foi filmado. O crime cometido em 2001 só veio à tona no ano seguinte. Durante o inquérito, Weives, que ficou conhecido como o canibal de Rotemburgo, confessou tê-lo cometido com motivações sexuais. Em agosto deste ano outro caso de canibalismo chocou os europeus. Após terem sido avisados por vizinhos, policiais de Viena prenderam Robert A. por ter assassinado e comido partes do corpo (entre elas o cérebro) de Joseph S. Ambos sem-teto, eles viviam juntos num apartamento cedido pelo serviço social do governo austríaco.

Casos de canibalismo aparecem no noticiário de tempos em tempos, indicando que o fenômeno é mais freqüente do que ousamos pensar. Quem tiver estômago para pesquisar na internet vai encontrar instruções detalhadas de desmembramento do corpo humano, sempre associadas a conteúdos de temática sexual, que mais parecem guias para o abate de animais. Afinal, como explicar esse fenômeno que à maioria de nós é tão repugnante?

A disseminação do cristianismo no Ocidente e do islamismo no Oriente foram duas importantes forças repressoras dos rituais canibais, de modo que, quando o fenômeno volta a ocorrer, ainda que esporadicamente, nos dias de hoje, está sempre associado a indivíduos de alguma forma deslocados na sociedade, quase sempre portadores de transtornos psíquicos. Trata-se do canibalismo patológico.

O risco de um esquizofrênico sem tratamento adequado cometer um crime de morte é bem maior que o de uma pessoa saudável. Durante a fase aguda de surto, muitos pacientes são tomados pela sensação de “dissolver-se”. Nesse caso, o ato canibal pode ser a última tentativa desesperada de ter de volta o próprio corpo. Assolado por alucinações paranóides, o indivíduo se sente perseguido, ameaçado por forças que o fazem se sentir predestinado ou alçado a uma condição superior. As vozes imaginárias podem sugerir, por exemplo, que a ingestão de carne humana o tornará imortal ou libertará o mundo das forças do mal. Esse foi precisamente o caso de Paul Reisinger, que assassinou seis mulheres entre 1779 e 1786 na Áustria. Ele estava convencido de que comendo o coração ainda palpitante das jovens obtinha sorte no jogo e podia se tornar invisível.

É preciso deixar claro, no entanto, que os atos de canibalismo são exceções entre os delitos violentos praticados por esquizofrênicos durante episódios de psicose aguda. Sempre que esses crimes estiveram associados a transtornos psíquicos, e foram devidamente julgados, os réus foram considerados criminalmente inimputáveis e encaminhados para clínicas psiquiátricas, onde ficaram sob a custódia da Justiça. Embora raros, os casos de canibalismo patológico costumam estar associados a transtornos graves de personalidade e perversão de natureza sádica.

PERVERSÃO SÁDICA

A antropofagia é um componente habitual das relações afetivas e sexuais. Os atos de beijar, morder e chupar fazem parte do repertório das carícias trocadas entre pais e filhos e entre casais; expressam proximidade emocional e desejo de ter o outro, simbolicamente, “dentro de si”. Esse desejo erótico de incorporar a pessoa amada transparece quando se diz que alguém é “gostoso” ou quer “comer” o outro. A fantasia de devorar ou ser devorado também está presente em diversas fábulas e brincadeiras de crianças e adultos.

Quando o canibalismo se converte em crime sexual, no entanto, raiva e agressividade são dois componentes quase sempre presentes. Depois de deglutir o amante, Armin Weives disse que seu ato tinha sido “como um casamento, algo que o alçou a uma condição sobrenatural... Eu tinha a esperança de que ele se tornasse parte de mim”. Enquanto o matava e o esquartejava, desfrutou um estado eufórico que combinava ódio e alegria.

Outro canibal famoso, o japonês Issei Sagawa, que comeu sua professora de alemão em 1981, deixou um registro escrito da cena: “Corto seu corpo e levo a carne à boca inúmeras vezes. Então fotografo seu cadáver branco com ferimentos profundos. Faço sexo com seu corpo. Quando a abraço, ela emite um sopro, me assusto, ela parece viva. Eu a beijo e digo que a amo. Então, arrasto seu corpo para o banheiro. A essa altura estou exausto, mas corto sua anca e coloco a carne em uma assadeira. Depois de cozida, sento-me à mesa usando suas roupas de baixo como guardanapo. Elas ainda têm o cheiro de seu corpo”.

Crimes como os de Sagawa e de Weives representam o ponto final de uma evolução perversa sexualmente sádica. Para compreender o fenômeno, é interessante analisar como surge a perversão sexual, que não contém necessariamente o elemento sádico. O psiquiatra e psicanalista Robert J. Stoller (1924-1991), da Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia em Los Angeles, reconheceu nessa modalidade de canibalismo uma forma de ódio erótico cujas raízes estão no desenvolvimento, na infância, da identidade masculina: o bebê se sente fundido à mãe, seu corpo e seu psiquismo não existem separados da pessoa que lhe serve de referência no mundo. Com base na teoria da psicanalista Melanie Klein é possível pensar que, no decorrer do processo de individuação, o garoto se reconhece como possuidor de um corpo próprio, de homem, não de mulher. Então lutará constantemente contra uma nova fusão com a mãe que, no desenvolvimento de sua identidade masculina, pode se converter temporariamente em uma “mãe má”.

No ritual canibal perverso esse elemento do “mal” se projeta no objeto a ser destruído. Por outro lado, a assimilação da carne serve para restabelecer a ligação simbiótica original. Segundo Stoller, o cerne da perversão é a raiva e o ódio, provavelmente resultantes de frustrações vividas na infância no tocante à sexualidade. Doenças e humilhações, e o sofrimento a elas inerente, são renegados ou convertidos no próprio triunfo.

O psiquiatra e psicanalista alemão Eberhard Schorsch (1935-1991) analisou outros aspectos da perversão sexual. Segundo ele, as fases da perversão se dividem em quatro. Na primeira, fantasias sexuais desviantes já se mostram intensas, mas só emergem esporadicamente. Na segunda, aparecem com regularidade, como penosos conflitos. Na terceira etapa a sexualidade quase não pode ser vivenciada sem essas fantasias e os desencadeadores da crise não são mais debelados. Neste ponto, o processo se torna irreversível. Finalmente, na última fase, as fantasias sexuais desviantes transformam-se em novos rituais e passam a ocupar espaço cada vez maior.

A encenação perversa serve-se principalmente da exploração do medo e da tensão. Com isso o indivíduo se vê aliviado das agressões e consegue levar uma vida discreta, sem levantar suspeitas. Seus pensamentos e sentimentos, porém, denunciam uma identidade masculina fragilizada e se ocupam basicamente com delírios de potência e poder, busca de proximidade e calor, defesa contra diversos medos, entre eles o de ser abandonado ou “engolido” por uma mulher. A obsessão sexual também é uma forma de repelir essas aflições. Em geral, as pessoas com sintomas perversos não chegam a ter uma sexualidade saudável, já que toda sua intimidade está impregnada pelo medo.
Já o sádico experimenta satisfação na total dominação do objeto sexual. Por meio do aviltamento e do suplício ele consegue a submissão absoluta da vítima, o que o desloca para uma posição equivalente à divina. Há também demonstrações de raiva e ódio, por meio das quais o outro é “despersonalizado”. Quase sempre essa encenação assume contornos violentos e obedece a regras estritas.


Andréia Miglioranza Marin: Gostaria de enfatizar o fato que o canibalismo está intimamente ligado a introjeção, que é a introdução do fora para dentro, beira a incorporação e esta relacionado a indentificação (identificação com algo). Retomemos a fase oral, onde a criança tem o prazer na área bucal, quando bebê põem-se tudo na boca, incorpora-se as coisas. Podemos então pensar no canibal, como um ser que têm uma fixação na fase oral, por isso o canibalismo está ligado ao fator sexual, na fase oral teve-se prazer e então ficou fixada, quando comete-se o ato canibal remete-se a fase oral repetindo uma forma de prazer.

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