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O dramaturgo francês considerou a questão da verdade e da mentira, no teatro e na vida real, ao criar seu mais famoso personagem, hipocondríaco e narcisista | ||||||
por Sebastien Dieguez | ||||||
Por que o personagem acredita estar enfermo? Ele tem consciência de seu comportamento estranho ou só finge estar debilitado? Talvez sofra de um transtorno mais profundo, que o induza ao erro sobre seu estado de saúde. Para entender a natureza da doença imaginária de Argan, é preciso voltarmos para a história da hipocondria. Se a definição do problema parece clara – uma preocupação excessiva com o próprio bem estar físico –, seus contornos permanecem misteriosos. Em 1834, o psiquiatra Éric Leuret escreveu que tanto os médicos quanto seus pacientes “contribuíam para tornar obscuro aquilo que eles se dedicavam a esclarecer”, e a classificação atual em termos de “perturbação somatoforme” só reforça essa observação. ENTRE PSICOSE E NEUROSE Para Hipócrates, a hipocondria estava vinculada a sintomas ambíguos da digestão, dores difusas dos órgãos internos e dificuldades respiratórias. A ligação com o conceito de melancolia também faz parte da história da hipocondria e é apresentada pela primeira vez em Anatomia da melancolia (1621), de Robert Burton. No século 17, desenvolveu-se igualmente a noção de que a hipocondria é uma perturbação do sistema nervoso associada à histeria, outra patologia que tanto intrigava médicos e só foi desvendada anos mais tarde, por Sigmund Freud. A hipocondria, porém, nunca deixou de oscilar entre perturbação das vísceras, disfunção cerebral, pura simulação, problemas emocionais, hipersensibilidade (ou, inversamente, perda das sensações), ansiedade, obsessão, narcisismo, depressão, degeneração hereditária. Chega-se quase à conclusão de que a principal característica da hipocondria é justamente ser inesgotável. Pacientes e médicos enfrentam o mesmo problema: é impossível encontrar o que está por trás da queixa. | ||||||
Assim, a hipocondria pode assumir tanto uma forma delirante como uma manifestação ansiosa, mais benigna. Aparentemente, nos dois casos, em algum ponto entre o corpo e o cérebro instala-se um ruído de comunicação até agora mal identificado. Será o corpo que engana o cérebro, ou será o cérebro que fabrica alucinações corporais? A questão permanece aberta e a única certeza que se tem, até hoje, é que a hipocondria continua sendo um incômodo para os profissionais da saúde. Esses doentes são o desespero dos médicos: eles os induzem ao erro, ou os põem na defensiva. E em qualquer das hipóteses a relação de confiança necessária ao ato terapêutico fica comprometida. O que se pode dizer em relação a Argan é que ele acredita ser doente, quando todos sabem que é saudável e que teme ser abandonado pelos médicos. A peça começa com uma cena na qual o protagonista calcula o que lhe custaram seus últimos tratamentos e faz a lista de seus inúmeros sintomas. Evidentemente, ele se compraz com o estatuto de doente e parece ter prazer com suas constantes queixas, nutridas de forma obsessiva. O recorrente elemento escatológico, no Doente imaginário – lavagens intestinais e a necessidade de Argan de evacuar continuamente –, prefigura o estágio anal do desenvolvimento psicossexual tão bem descrito pela psicanálise, caracterizado pelo prazer narcísico vinculado ao controle das funções corporais e ao gozo da repetição. Não é por acaso que esse estágio foi associado à neurose obsessiva. Ele indica ainda a proximidade da hipocondria com o sentimento paranoico de ser infectado, envenenado e estar internamente sujo. O nome do médico, Purgon, evoca de modo nada sutil, mas eficaz, a natureza de sua verdadeira função. Além do efeito cômico – nunca fora de moda – ligado às funções corporais, a escatologia remete ao problema do hipocondríaco com o próprio corpo e sua fantasia de expulsar o mal que o habita, se purificar e se livrar das angústias. O fato de Argan não estar realmente doente (ao menos como imagina) aparece na dicotomia entre suas terríveis angústias e seu comportamento, que não deixa transparecer nenhum sintoma físico. Ele é objeto do sarcasmo de Toinette, sua criada, quando o lembra de pegar a bengala esquecida, já que, como inválido, ele deveria ser incapaz de se deslocar sem apoio. Argan é incapaz de responder à simples pergunta: “Que mal o aflige?”. Aliás, é ele próprio quem pede ao médico que o informe sobre o que está sentindo: “Eu suplico, senhor, que me diga um pouco como estou”. | ||||||
Com boa saúde | ||||||
Segundo o pesquisador Patrick Dandrey, especialista em literatura do século 18 e em história da melancolia, ao utilizar uma categoria médica, a hipocondria, Molière a “esvazia” de seu conteúdo psicológico, passional e teórico. Ao fazer isso, ele só deixa o invólucro, a casca de uma patologia antiga, e a explora para inventar uma nova. Ironia do destino, mais tarde a medicina se apoderaria da invenção de Molière. Efetivamente, Dandrey conseguiu ter acesso ao primeiro documento médico a utilizar O doente imaginário como fonte de inspiração. Trata-se de uma descrição, de 1736, do médico Boissier de Sauvages, que sugere um novo tipo de loucura delirante, classificada como melancolia. Entre o delírio místico e a “loucura mansa”, ele introduziu a melancholia argantis, ou doença imaginária. Como escreve Dandrey, “100 anos depois de morto Molière foi reconhecido pelo pensamento médico mais autorizado por sua contribuição, com O doente imaginário, ao conhecimento dos delírios de natureza melancólica”. Boissier de Sauvages descreve da seguinte forma a doença de Argan: “Os doentes imaginários, tão bem representados por Molière, são aqueles que, comportando-se extremamente bem, imaginam estar a ponto de morrer, devido a ligeiros incômodos por eles sentidos, o que os torna tristes, melancólicos, de mau humor para com os médicos, e os obriga a viver na solidão, que os impede de fazer outra coisa a não ser gemer e deplorar a própria infelicidade, de manhã até a noite; ou então eles obedecem a um regime de vida extravagante, que altera sua saúde e os expõe a uma infinidade de doenças mais perigosas do que as que tentam curar”. No entanto, o doente imaginário gozava de boa saúde. Esses doentes de fato existem. O médico especifica: “Essa doença difere da hipocondria porque que aqueles por ela atingidos não sofrem de nenhum problema real, enquanto que os hipocondríacos estão sujeitos a sintomas enganosos”. Não se deve, portanto, confundir doença imaginária com hipocondria. Os que sofrem da primeira não sabem de que padecem, mas convivem com o sofrimento. Já o doente imaginário está “desesperadamente são e gozando de boa saúde”, segundo as palavras de P. Dandrey. | ||||||
Além do prazer narcísico de acreditar estar doente, um segundo sintoma aparece de forma clara: Argan procura desesperadamente a atenção de quem o cerca. Toda a peça gira em torno dele, que entra imediatamente em pânico ao ficar sozinho. Nesse ponto, seu caso lembra o da síndrome de Münchhausen, cujos pacientes simulam doenças ou tomam medicamentos a fim de provocar falsos sintomas e despertar a preocupação daqueles que cuidam dele. Além disso, sua atitude parece obedecer a motivos inconscientes, que resistem às múltiplas tentativas de racionalização daqueles que querem seu bem. “Senhor, ponha a mão na consciência: o senhor está doente?”, pergunta-lhe Toinette, que não obtém outra resposta a não ser a cólera do patrão. Seu irmão Beraldo não consegue resultado melhor, apesar das súplicas – “Não dê asas à imaginação” – e de uma habilidosa argumentação: “Um grande indício de que você está bem e tem um corpo perfeitamente composto é que, com todos os tratamentos, ainda não conseguiu estragar sua saúde; nem mesmo com todos os remédios que já o fizeram tomar você morreu”. Essas intervenções sugerem uma faceta fundamental do comportamento de Argan: ele não pode ser acusado de pura e simples encenação. Sua sinceridade e ingenuidade se revelam quando ele acredita piamente que Louison, sua filha mais nova, está morta, quando é mais que evidente que ela está só fingindo. A presença de uma criança na peça, coisa completamente singular na obra de Molière, fornece uma pista para ajudar a compreender o comportamento de Argan. Sua credulidade diante da brincadeira da menina mostra que é ele a criança da peça. Sua imaturidade, dependência, obsessão pelos médicos e a facilidade com a qual é manipulado indicam obscurecimento das capacidades cognitivas, algo que não se espera de um adulto. “Doutor Purgon me disse que passeasse pelo quarto toda manhã, 12 idas e 12 vindas; mas eu me esqueci de perguntar se é no comprimento ou na largura do aposento”, indaga-se ele, com a maior seriedade do mundo. Esse comportamento revela uma profunda angústia de ser abandonado, fantasia arcaica da criança de tenra idade. O que pode ser mais patético do que ouvir um velhote dizendo: “Doutor Purgon diz que eu sucumbiria se ele deixasse de cuidar de mim por meros três dias”? Expressa-se aí o medo de envelhecer e morrer sozinho. Essas poucas observações levam à conclusão de que a doença imaginária – se for disso realmente que Argan é vítima – não existe como entidade clínica isolada. O comportamento dos médicos e da família é ao mesmo tempo causa e consequência dela. A seu modo, cada personagem da peça alimenta a patologia e é vítima dela. Os médicos, evidentemente, se aproveitam de sua ingenuidade e o confortam em suas angústias, mas seu ganho se baseia nos olhares que recebe. Beline, a esposa que só quer o dinheiro do marido, tenta confortá-lo em seus caprichos. Ela o embrulha, literalmente, cercando-o de travesseiros e afundando a touca em sua cabeça. | ||||||
De certa forma, o doente imaginário é o triunfo da imaginação sobre o cotidiano, a derrota da hipocrisia e do erro pela criatividade. Nessa obra, Molière aborda ainda o desenvolvimento da ciência moderna e o reconhecimento da importância do efeito placebo. O imaginário dos pacientes, ao longo da história, tem tido muitas vezes mais poder do que os dogmas dos médicos. Não só a última obra do autor trata da emergência de uma medicina baseada em comprovações – e não na autoridade ou na tradição – como põe em destaque os fatores relacionais no desenvolvimento dos sintomas subjetivos e nos aspectos psicossomáticos, desconhecidos pelos médicos daquela época. PODER DA COMÉDIA Sabe-se hoje em dia, por exemplo, que sintomas como a dor ou a rigidez apresentada por pacientes com Parkinson podem piorar simplesmente se as expectativas do paciente forem negativas, ou se eles tomarem uma substância inerte pensando que vai agravar seu estado. Um estudo recente mostra que mentir sobre seu estado de saúde, dizendo ser ele pior do que realmente é pode levar algumas pessoas a acreditar que estão doentes. Assim, fazer com que uma doença se instale efetivamente é um passo fácil de ser dado, em razão das defesas imunitárias e do passado médico de cada um. Molière morreu pouco após ter desempenhado o papel de Argan. Teria ele concebido sua última peça com um objetivo terapêutico, da mesma forma que o personagem “se torna” médico para se livrar de suas angústias? É possível cogitar que ele quisesse explorar os limites da própria finitude. Ou seria uma última gargalhada na cara do destino para zombar da doença que o espreitava? Não se sabe ao certo, mas o ator La Grange, contemporâneo do dramaturgo, escreveu em suas memórias, a respeito da última representação de Molière: “Ele teve dificuldade para desempenhar o papel e o público soube facilmente que seu estado não era em nada diferente daquele do personagem que ele se esforçava para interpretar”. |
sábado, 20 de agosto de 2011
Molière e o doente imaginário
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Parece ser bem interessante, Vi que sua amiga comentou que tá passando a peça, se vc souber onde, vamos ver?
ResponderExcluirbeijos