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A anorexia nervosa é um transtorno alimentar significativamente mais frequente em mulheres, em cuja etiologia fatores biológicos, psicológicos, sociais e culturais podem, interagindo entre si, atuar como predisponentes, precipitantes e mantenedores (Morgan, Vecchiatti, & Negrão, 2002). Segundo os sistemas de classificação dos transtornos mentais vigentes, os aspectos psicopatológicos centrais desse transtorno são o medo mórbido de engordar e o controle obsessivo do peso corporal (American Psychiatric Association, 2002; Organização Mundial da Saúde, 1993). Ambos levam ao emprego de dietas extremamente restritivas, à utilização exacerbada de métodos purgativos ou à prática excessiva de exercícios físicos.
Claudino e Borges (2002) salientam que outra característica psicopatológica importante na anorexia nervosa é a severa perturbação no modo de vivenciar o peso corporal. Motivada pela autoavaliação obsessivamente baseada na forma física, essa perturbação fomenta a busca desenfreada da magreza (Peres & Santos, 2006). Logo, alguns autores propõem que a característica em questão deve ser considerada um critério operacional para o diagnóstico. Entretanto, é preciso reconhecer que não raro pacientes portadores de outros transtornos mentais e até mesmo indivíduos saudáveis apresentam uma percepção inapropriada de sua forma física.
Obviamente os sistemas de classificação dos transtornos mentais têm desempenhado um papel decisivo para a sistematização do conhecimento em psicopatologia. Todavia, Pereira (1996) alerta que esses, supostamente em nome de um compromisso prático, são constituídos a partir de pressupostos operacionais que promovem uma redução dos fenômenos psicopatológicos a seus aspectos empiricamente acessíveis. A psicanálise, em contrapartida, privilegia a perspectiva da dimensão subjetiva do funcionamento psíquico, de modo que pode contribuir, como disciplina científica, para a ampliação do horizonte conceitual e metodológico da pesquisa em psicopatologia.
Kelner (2004) inclusive defende que a referência à psicanálise é imprescindível para a compreensão dos transtornos alimentares por possibilitar um delineamento da singularidade do paciente em suas facetas mais profundas. Porém, entre os inúmeros estudos dedicados à anorexia nervosa nos últimos anos, é possível notar o predomínio de abordagens biológicas, cognitivas ou comportamentais, o que, como bem enfatiza Fernandes (2006), tem levado a uma utilização da psicanálise nesse contexto incompatível com toda a fecundidade teórica que lhe é característica. Por compartilharmos dessas idéias, discutiremos a seguir algumas passagens da obra freudiana que subsidiam uma delimitação da psicopatologia da anorexia nervosa em termos psicanalíticos.
Anorexia nervosa: breve percurso pela obra freudiana
Conforme Fernandes (2006), Freud não dedicou nenhum de seus textos especificamente à anorexia nervosa. Entretanto, considerações de grande relevância acerca desse transtorno podem ser localizadas em sua obra. A primeira delas remonta à publicação do historial clínico de uma paciente anônima que apresentou sintomas de anorexia nervosa nos meses subsequentes ao nascimento de cada um de seus três filhos. Freud (1893/1996) observou em tal paciente uma tendência primária à depressão, condição que ele, na época, atribuía um papel decisivo na organização neurótica. Contudo, o historial clínico referido também possibilita articular a anorexia nervosa a problemáticas relativas à feminilidade e à maternidade.
Quando da publicação do historial clínico de Emmy von N., paciente em cujo quadro clínico a anorexia nervosa ocupava um lugar de destaque, Freud postulou que a função alimentar pode ser comprometida pela ocorrência de eventos traumáticos. Emmy von N. relatou que perdeu completamente o apetite após presenciar a morte de seu marido sem nada poder fazer para socorrê-lo por estar acamada em função do resguardo puerperal. Não obstante, Freud afirmou ainda que ela comia tão pouco por não gostar do sabor, e não podia apreciar o sabor porque o ato de comer, desde os primeiros tempos, se vinculara a lembranças de repulsa cuja soma de afeto jamais diminuíra em qualquer grau (1895/1996a, p. 118).
Tal afirmação se sustenta levando-se em conta que, durante as sessões de hipnose conduzidas por Freud, Emmy von N. mencionou que, quando criança, era forçada por sua mãe a comer sua refeição por completo. Tendo em vista que demorava a fazê-lo, os alimentos esfriavam e passavam a lhe causar repugnância. Ademais, a paciente em questão admitiu que, em certa época, tinha receio de ser contaminada por seus irmãos – os quais haviam sido acometidos por varíola e tuberculose – ao dividir a mesa com os mesmos. Freud (1895/1996a) concluiu que a repulsa de Emmy pela comida foi reativada em função de um evento traumático porque havia sido recalcada quando da situação original, permanecendo assim até irromper devido à ação do inconsciente.
Freud (1895/1996b) retoma a aproximação entre a anorexia nervosa e a depressão ao associar, em um texto teórico, a perda de apetite à perda da libido. A anorexia nervosa poderia, então, ser considerada uma espécie de melancolia que acomete indivíduos, sobretudo do sexo feminino, cuja sexualidade não se desenvolveu plenamente. Quando da publicação do historial clínico de Dora, adolescente judia virgem, essa tese é embasada no estabelecimento de uma relação entre o surgimento de seu comportamento alimentar patológico e seu envolvimento com um amigo de seu pai. Para Freud (1905/1996), os sintomas de Dora decorriam basicamente da incapacidade da paciente manejar as emergências pulsionais típicas da juventude potencializadas pela natureza edípica da situação por ela vivenciada.
No historial clínico do homem dos lobos, Freud (1918/1996) atribui a eclosão do quadro neurótico desenvolvido pelo paciente na idade adulta a problemas ocorridos em sua infância, particularmente aqueles referentes ao fato de o mesmo ter observado uma relação sexual de seus pais. Os graves sintomas fóbicos, obsessivos e paranoides do paciente, de acordo com o raciocínio freudiano, tiveram como ponto de partida sua perda de apetite, a qual, por sua vez, foi precipitada pelos conflitos associados à cena primária. Afinal, o homem dos lobos se encontrava, na ocasião, atravessando a fase oral, permanecendo, portanto, fixado à equação alimentação-sexualidade, característica dessa etapa da organização da libido.
Apresentar um exame detalhado das contribuições freudianas para o delineamento da psicopatologia da anorexia nervosa foge ao escopo do presente estudo. Entretanto, tendo em vista o que precede, pode-se constatar que Freud procurava compreendê-la mediante a utilização do modelo etiológico da histeria, ressaltando os desdobramentos do recalcamento sobre o erotismo oral no que tange à organização da sexualidade e o papel de eventos traumáticos como precipitantes dos sintomas. Além disso, não deixava de registrar a dimensão melancólica da anorexia nervosa. Tais proposições forneceram os elementos nos quais autores contemporâneos, representantes de diversas vertentes psicanalíticas, se apoiaram na busca de uma compreensão mais detalhada do transtorno em questão em suas distintas manifestações na atualidade.
Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-863X2011000300008&nrm=iso&tlng=pt
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