Patologias do vazio: um desafio à prática clínica contemporânea
Evanisa Helena Maio de Brum*
Universidade Luterana do Brasil
RESUMO
Este
trabalho procura apresentar as patologias do vazio, que incluem
diagnósticos como os transtornos borderline e narcisista de
personalidade, o conceito de falso self e o autismo. O presente texto
baseou-se em pesquisa bibliográfica sobre a teoria da técnica
psicanalítica. A teoria do desenvolvimento (principalmente a obra de
Donald Winnicott) foi usada para compreender essas patologias
regressivas. Uma análise de fragmento literário e um caso clínico
estabelecem a ligação entre teoria e prática.
Palavras-chave: Psicoterapia, Prática clínica, Patologias do vazio, Teoria winnicottiana.
Através
dos textos literários, podemos conhecer de perto as inquietudes da
alma humana; dessa forma, a literatura transforma-se em um
instrumento capaz de auxiliar-nos na compreensão do funcionamento
psíquico. O aprendizado sobre a utilização da literatura na
Psicanálise, obtivemos de Freud, pois encontramos essa influência na
construção de sua teoria, seja de forma direta, seja indireta. Freud
utilizou, em sua vasta produção, autores como Sófocles, Goethe,
Schakespeare, Dostoievsky, Hoffmann, entre outros (SBP de PA, 2003).
Sabiamente, intuiu que a verdade humana se encontra nos textos
literários quando acolhem e dão forma aos desejos e às pulsões do homem
(Masina, 2003). Assim como Freud, muitos de seus seguidores utilizaram
a literatura na formulação de seus trabalhos em Psicanálise. Dessa
forma, no presente artigo, também fazemos uso de um fragmento literário
na tentativa de compreender o mundo interno humano, mais
especificamente, as patologias do vazio. Tais patologias surgem, na
contemporaneidade, como um desafio para a Psicanálise; é necessário que
possamos voltar a nossa atenção para os estudos desses diagnósticos,
buscando a melhor forma de compreendê-los e tratá-los. Para abordar tal
questão, começamos contando parte da história de autoria da escritora
gaúcha Letícia Wierzchowski (1999).
Meu
filho Theodoro cresceu e percebi que era mesmo um caçador de verdades,
das mais simples às mais complexas, desvendando o mundo com um olhar
do qual nada escapava; tinha a facilidade de antever as coisas.
Amparo
nos chegou em uma dessas tantas excursões que Theodoro fazia pelas
ruas da cidade. Empoleirado na carroça, o menino ia e vinha e trazia
qualquer coisa que pudesse. Na primeira tarde em que a vi, pareceu-me
com qualquer desses cãezinhos que Théo recolhia das estradas, e assim
recordei-me dela por todos os anos. Era uma coisinha pequena e
recoberta de imundícies, enrolada em uns trapos velhos e duros de pó.
Escondida num canto da carroça, agarrada às próprias pernas, os cabelos
sujos e emaranhados. Théo disse-me que era muda, mas que ouvia tudo
perfeitamente.
Amparo,
a muda, era tão quieta que eu chegava a esquecer-me de sua existência.
Assim, Amparo cresceu, sem voz e sem sobrenome, confundindo-se com a
sombra de meu filho, silenciosa. Mais tarde, Theodoro já lhe contava os
futuros que antevia; ensinou-lhe a ver a alma dos viventes. Ela
bebia-lhe cada palavra, mergulhada em seu mundo de silêncio, e
entregava-se ao prazer de imitar aquele menino dourado.
Depois
de Théo, vinha sempre Amparo, porque não sabiam ser um sem o outro.
Quando a noite caía e todos recolhiam-se aos quartos, lá se ia Amparo,
enredada em seus panos, colar seu corpo à porta de meu filho, na ânsia
de captar seus sonhos pelas frestas de madeira. Ela bebia-lhe os risos
cálidos e os poemas sussurrados, e, assim, lentamente, em seu mundo de
silêncios, começava a brotar um novo universo, porque o sentimento que
lhe nascia fazia crescer sua alma.
Com
o tempo, Theodoro ensinou-a a ler, decifrando os doces volteios da
escrita com a calma e a paciência de um apóstolo. Nunca mais, para ela,
haveria a solidão, e a mudez de estátua era coisa que esquecia quando
mergulhava nas páginas dos livros.
Desde
que meu filho pressentira sua morte, uma tristeza silente
impregnara-se no fundo de seus olhos. Naquele dia, pensou: hoje irei à
praia e levarei Amparo comigo½; fechou os olhos para se sentir, e foi
então que, no escuro de si mesmo, percebeu que faltava algo. Faltava
Amparo. Theodoro sentiu que seu coração se descompassou... Ela havia
aprendido com ele a ler as almas...
Após
algumas tardes da morte de meu filho, percebi que havia-me esquecido
que existira, entre nós, Amparo. Esquecera-me porque, com o fim dos
risos cálidos de Théo, parecera-me normal que Amparo também nos sumisse.
Procuramos Amparo por todos os cantos e não a encontramos. Depois
disso, matutei muitos dias sobre a muda Amparo, a quem limpei as
imundícies e que, por tantos anos, seguira meu filho feito uma sombra ou
um prolongamento de seu corpo. Tanto pensei e repensei que, confusa,
decidi que não havia existido. Por fim, vencida por outras certezas e
lembranças, acabei aceitando a existência e o desaparecimento de Amparo,
a muda e, mais tarde, atribuí-lhe o doce episódio das rosas brancas
deixadas diariamente sobre o túmulo de meu filho. Amparo agora vivia
em algum lugar longe de nossa casa. FIM.
Partimos
dessa história para refletir sobre as patologias do vazio como um
desafio à prática clínica contemporânea, e indagamos : qual seria a
abordagem terapêutica com esses pacientes?
Muitos
dos pacientes contemporâneos são um pouco Amparo, chegam buscando
muito mais do que serem compreendidos; buscam existir, serem olhados,
encontrados, como Amparo o foi por Theodoro.
Na
época em que Freud formulou sua teoria, os conflitos de seus pacientes
eram vistos com base na teoria da sexualidade (Freud, 1905a/1999), que
ele postulou no início do século, e a partir da qual propôs uma técnica
de abordagem – a técnica psicanalítica. Seus pacientes, nesse
contexto, eram mais Theodoros1
do que Amparos. Para atender Theodoro, usaríamos os legados deixados
por Freud, interpretando as associações livres através do uso da
palavra, muitas vezes entendendo o não-falado como resistência ao
tratamento e à cura (Freud, 1937/1999).
Se
hoje recebermos Amparo e qualificarmos sua mudez como resistência,
criaremos um abismo ainda maior do que o já existente, e seu mundo
interno seguirá sem a oportunidade de ser decifrado. O funcionamento
psíquico de Amparo enquadra-se no que tem sido intitulado patologias
do vazio, referindo-se aos pacientes com transtornos de personalidade
borderline, narcisista (American Psychiatric Association, 1995),
pacientes com falso self (Winnicott,1960/1982) ou, ainda, ao que
Zimerman (2001) se refere ao citar a obra de Tustin e sua denominação
pacientes autistas, os quais se encontram em um estado mental de
desistência, em cujo caso o único desejo é o de não desejar.
Denominações diferentes para se dizer que são pacientes que sofrem de
vazios, vazios esses oriundos de falhas precoces no primitivo vínculo
mãe-bebê, e os bebês crescem e transformam-se em adultos que ainda
portam esses vazios.
Nos
estudos vinculares, encontramos uma forma de compreender essas
patologias mais regressivas a partir das teorias do desenvolvimento.
Winnicott (1963a/1982), um dos autores dessa teoria, descreveu o
desenvolvimento emocional primitivo em termos da jornada da dependência
à independência, propondo três categorias: dependência absoluta,
dependência relativa e autonomia relativa. Para ele, é na fase de
dependência absoluta que a mãe desenvolve o que chamou de preocupação
materna primária (Winnicott, 1956/2000). Esse estado especial da mãe,
de regressão temporária, faz com que ela seja capaz de desenvolver uma
sintonia fina com seu bebê, compreendendo-o por meio de uma
surpreendente capacidade de identificação e constituindo-se, com ele,
em uma unidade. A mãe, então, empresta ao bebê seus braços, suas pernas,
seu ego e, assim, vai auxiliando-o a se integrar. Se, nessa fase, a
mãe não é capaz de conectar-se com seu bebê, este fica num estado de
não-integração, tornando-se apenas um corpo com partes soltas. De acordo
com as idéias acerca do desenvolvimento propostas por Winnicott, é
nesse momento que ocorre a falha nos pacientes aos quais me refiro, e
que me parece ficarem muito bem representados pela personagem Amparo.
São pacientes, assim como ela, perdidos num mundo de não- existência,
sem passado, sem voz, pacientes que ainda não nasceram psicologicamente
(Malher, 1975).
Para
esses pacientes, é necessário e imprescindível que ocorra uma
regressão dentro do setting. A abordagem é criar um setting estável,
onde uma relação de confiança e segurança possa ser construída, para
que o paciente possa regredir e recriar, com o terapeuta, antigas
situações de fracasso vividas com a mãe, relacionadas à época de
dependência absoluta, só que, agora, com a oportunidade de serem usadas
terapeuticamente através da relação transferencial2.
No
momento de regressão à dependência absoluta, o ambiente sustenta o
indivíduo e este, ao mesmo tempo, nada sabe sobre o ambiente – é uno
com ele. Então, haverá somente uma pessoa no setting, o próprio
paciente, o que traz para o tratamento um aspecto diferente do proposto
por Freud com os pacientes histéricos, ou seja, para Freud, existem
três pessoas, uma delas fora do consultório3;
quando existem apenas duas pessoas, terá ocorrido uma regressão do
paciente no contexto, o analista representando a mãe com sua técnica,
sendo o paciente, o bebê. Refiro-me, aqui, a um estado seguinte de
regressão, no qual há apenas o paciente, como me ensinou uma paciente,
em um momento regressivo, ao chamar-me pelo seu próprio nome.
Frente
a essa situação de regressão, o contexto torna-se mais importante que a
interpretação. A ênfase é transferida de um aspecto para o outro
(Winnicott, 1954/2000). Em 1960, Winnicott acrescenta que devemos falar
do que acontece na sessão, o que é diferente de interpretar. Um aspecto
importante é que o paciente pode, nesse período de regressão, usar a
falha do analista, o que o levará a uma falha antiga, que o paciente
pode agora perceber e zangar-se com isso. Se o terapeuta se defende, o
paciente perde a chance de zangar-se com uma falha passada justamente
no momento em que a raiva se tornou possível. Outra questão pontuada
nesse contexto é que os intensos sofrimentos possam ser suportados,
principalmente pelo terapeuta (Winnicott, 1955-6/2000).
No
atendimento com esses pacientes, é necessária uma conexão empática, a
fim de sermos capazes de usar expressivamente nossa
contratransferência, pois quando Amparos nos procuram, elas são
realmente mudas, psiquicamente mudas, não se expressam pela palavra,
são pré-verbais. Em outras vezes, como ressalta Zimerman (1999), usam
as palavras para não comunicar. Falam pelo corpo, demonstram seu
desconforto remexendo-se na cadeira, sentem dores, falam pelos
silêncios que, quando percebidos empaticamente pelo terapeuta capaz de
decodificá-los e nomeá-los ao paciente no momento oportuno, passam aos
poucos a adquirir significados. Nossa abordagem, frente a esses
pacientes, seria a de tentar encontrar uma via de comunicação, como fez
Theodoro com Amparo, que, lentamente, aproximou-se dela, fez com que se
sentisse segura, amparada (seria, para nós, um setting estruturado e
seguro).
É
importante, também, que o paciente possa reconhecer seu vazio, sua
não- existência. Winnicott, em seu texto Medo do Colapso (1963b/1994),
menciona que, se o vazio não é experienciado como tal, desde o começo,
ele aparece, então, como um estado de não-integração, que é
compulsivamente buscado. É somente a partir do reconhecimento da
não-existência que a existência pode começar.
Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932004000200006&nrm=iso&tlng=pt
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