No trânsito, para realizar ou buscar um prazer, "quebramos" algumas regras, inclusive podendo chegar à morte. Parece nítido que, quando esse é o assunto, tendemos a priorizar a satisfação e o gozo, e não a vida
Por Eduardo Lucas Andrade e Alexandre Aurélio Chaves
É preciso traçar o caminho sobre o saber, teoria e prática já adquiridos pela Psicanálise, ao longo destes anos. Devemos nos propor a escutar o sujeito desejante em sua complexidade, dinamismo e multiplicidade. Devemos entendê-lo como um ser demandante, inserido em uma cultura, no caso deste artigo, inserido em um trânsito. Nele, por exemplo, devemos escutar além, não se escuta um acidente entre dois carros, e sim entre duas ou mais pessoas. Nesse ponto, cabe um aprofundamento reflexivo em que muitos percebem o próprio veículo como um corpo estendido ou, então, como uma nova funcionalidade adaptada às suas exigências e se esquecem que são seres humanos em fl uente movimento. Veem-se os veículos como instrumentos extensivos de sua própria existência. Com isso, quando ocorrem os acidentes, voltam-se os olhares para os veículos. O próprio discurso cai sobre a matéria concreta que, ao mesmo tempo, é um representante das faculdades psíquicas investidas em si. Cada um o vê de uma forma. A Psicanálise nos chama a atenção para escutarmos as formas de linguagem a fim de atingir o inconsciente e as pulsões credenciadas ao Desejo. Dessa forma, pode-se intervir e fazer que (re)surja o insight que é a base da elaboração.
A Psicanálise nasceu da metapsicologia dos estudos freudianos, nasceu da clínica e a partir daí ganhou desmedidos ares. Surgiu junto com as demandas, possibilidades e necessidades de aplicá-la em outros âmbitos. Porém, a clínica sempre esteve ali, mesmo que esquecida por muitos, sendo a base da teoria, o alicerce da prática e o Chapolin do conjunto, ou seja, ela é aquela que responde à grande pergunta: "E agora, quem poderá nos defender?" Para entendermos o contexto do trânsito devemos recorrer à clínica, à Psicanálise por excelência.
O sistema capitalista oferece soluções rápidas que não promovem nem a saúde nem a vida, e sim, por vezes, criam tamponações e ilusões, como os usos que se fazem dos medicamentos para acabar com o sofrimento |
Acontecimentos trágicos no trânsito encontram-se registrados desde a mitologia. Lembremo-nos que Édipo matou o próprio pai em uma encruzilhada. Dessa forma, definiremos, aqui, o que chamamos de trânsito, para que possamos prosseguir. "Segundo o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), trânsito é a movimentação e imobilização de veículos, pessoas e animais nas vias terrestres" (CTB, 1997). Nos últimos anos, o trânsito evoluiu e cresceu drasticamente e, no século atual, exerce enorme infl uência na sociedade brasileira e mundial. Dentre essas infl uências encontra-se o amplo mal-estar na civilização que está em um "perigoso" processo de desenvolvimento.
Devemos nos propor a escutar o sujeito desejante em sua complexidade, dinamismo e multiplicidade
Buscamos, enquanto militantes da Psicanálise, adaptar-nos, ou
melhor, acompanharmos a demanda contemporânea que nos cerca e que gera o
mal-estar da atualidade. O trânsito é uma delas. Falta-nos algo e é
exatamente por faltar que buscamos. É preciso ter coragem e Desejo, ou
seja, algo que nos impulsione para além da falta. Coragem e Desejo para
encarar esses novos desafios ao qual estamos condenados a vê-los. Não
devemos fugir, e sim saber manejá-los frente a frente. A Psicanálise tem sido chamada para suprir exigências típicas do mundo capitalista. No entanto, esse mundo se destaca pela brevidade e rapidez em seus processos de desenvolvimento. Não se sabe ao certo qual rumo estamos tomando, sabe-se que cada vez mais rápido estamos tomando um rumo. Por vezes, acabamos nos perdendo, e a ancoragem ofertada, hoje, cai no campo do próprio sistema capitalista, onde se ofertam soluções rápidas que não promovem nem a saúde nem a vida, e sim, por vezes, criam tamponações e ilusões. Os usos que se fazem dos medicamentos são exemplos disso: soluções em apoios químicos, que desfazem o direito de elaboração, para acabar com o sofrimento, como se fôssemos proibidos de sofrer, como se isso fosse pactuado entre todos os adeptos dessa sociedade. O uso que se faz do trânsito também é outro exemplo disso - utiliza-se da potência do inconsciente e de seus princípios para atuar-se "narcisicamente" navegando no princípio de prazer. Economiza-se assim tempo, e mostram-se as máscaras da alegria em rostos e vidas tristes.
As fases de Eros
Eros: na mitologia grega é o deus do Desejo.
Eros na filosofia é o Eros do provei, gostei e quero mais. Na poesia é o
Eros do erotismo, do amor de um desejo voltado para a paixão, muitas
vezes de cunho sexual. Já na Psicanálise Eros é pulsão de vida, isto é,
energia psíquica daquela que preserva, dá continuidade, que faz liga,
que faz a união acontecer, um vínculo entre as coisas, entre os Outros.
Diz-se, portanto, que o objetivo triunfal de Eros é estabelecer a
preservação. |
Uma das atuais intervenções das "forças maiores" é dentro do capitalismo. Na Lei Seca, por exemplo, multa-se e apreendem-se as carteiras podendo até mesmo prender o sujeito. A sociedade está pedindo ajuda. Mas essa mesma sociedade que ofusca é a que pulsa no trânsito, o trânsito pulsa. Será que essa é a solução? Prender gentes, carros e carteiras junto de uma multa? Um preço pelo Desejo deve ser pago. Sabe-se que misturar bebida ao volante é perigo constante e pagar com vidas pode sair mais caro. Aqui temos o pulsar do Desejo contra o enigma da morte, ou seja, a eterna luta de Eros contra Tânatos se presentifica no trânsito escancaradamente, será que a potencialidade de Eros nos levará ao encontro de Tânatos? Retornaremos mais adiante neste ponto.
A contemporaneidade
Estamos em uma transição, não só em modelos topográficos como ocupações estranhas às sociedades anteriores, formas e lugares ocupados ineditamente. Estamos conhecendo o novo, e quando este novo vai se tornar conhecido e mais velho, nasce um novo "novo". Uma nova subjetividade, novas formas de sintomas, novas estratégias de vida, novas saídas, novas buscas, novas ilusões de promessas e novas aplicações do Desejo. Novos carros e novas formas de se transitar; novas formas de nos tornarmos civilizados, afinal, o trânsito pulsa na civilização, no encontro com o outro. O Desejo promove o encontro, o vínculo, o relacionar-se, lembremo-nos disso.
A civilização das últimas décadas tem como uma das características a evolução desmedida e a transformação gigantesca de suas relações com o meio, apresentando algumas dificuldades inerentes a isso, tais como a adaptação, inserção e controle do contexto de evolução, que se expande em todo o social. Um descompasso do Desejo que balança o corpo e a vida cotidiana, que afinal acontece em grande parcela no trânsito.
A Psicanálise tem que aprofundar
e descobrir o que mais o social esconde, com especial análise ao trânsito, utilizando novas estratégias em prol do ser humano
Muitos percebem o próprio veículo como um corpo estendido ou, então, como uma nova funcionalidade adaptada às suas exigências |
A economia existe nos princípios do aparelho psíquico, mas o tempo não. O aparelho psíquico é atemporal e econômico. Outro refl exo disso, dessa economia de tempo, relaciona-se aos limites de velocidade, que por repetidas vezes não são respeitados, resultando em inúmeros acidentes com mortes, deficiências, traumas, abalos e transtornos psíquicos que se perpassam, não só em quem está diretamente envolvido no acidente, como também em famílias e amigos dos envolvidos.
Na Lei Seca multa-se e apreendem-se as carteiras. É um sinal inequívoco de que a sociedade, a mesma que ofusca e que pulsa no trânsito, está pedindo ajuda |
O mal-estar causado no trânsito atinge todas as fases da vida, a começar pela infância
Para comprovar a infl uência e o estrago causados pelo
trânsito, destacam- se aqui algumas estatísticas no Brasil. De acordo
com a seguradora que administra o DPVAT ou, como é mais conhecido,
seguro obrigatório, em uma estatística de abril de 2011, o trânsito
deixou em média 160 mortos por dia no país. Já o Portal do Trânsito, em
uma estatística de 2010, diz que as formas das notificações e dos
relatos comprometem o resultado final das estatísticas que afirmam não
passar das 35 mil mortes causadas pelo trânsito em um ano, porém
contabilizam só as pessoas que morrem no local do acidente. Mesmo que a
vítima morra na ambulância não será contabilizada. Os especialistas
acreditam que esses números ultrapassam 50 mil mortes ao ano. De acordo
com as estatísticas de 2005, segundo o Detran e BHTRANS, o total de
vítimas deste ano, em Belo Horizonte, foi de 17.636. Em outra
estatística disponibilizada pelo site do jornal Gazeta do Povo, o número de mortes de motociclistas aumentou 754% em 10 anos no Brasil.PARA SABER MAIS
O Desejo e o trânsito
Enfatiza-se aqui a potencialidade do Desejo, grande descoberta freudiana. Freud, em seu talvez mais genial texto, "O inconsciente", postula que "o núcleo do Ics é composto de representantes pulsionais (triebrepräsentanzen) desejosos de escoar sua carga de investimento - em outras palavras, é composto de impulsos de Desejo (Wunschregungen)". Assim, o inconsciente freudiano, ao meu ver, é estruturado como energia, como Desejos e pulsões, energias psíquicas que pulsam por toda a vida.
Na frase que tem a palavra Desejo, só tem espaço para um sujeito, o eu. É eu Desejo, e não ele, ela Desejo. Quando se passa ao outro, o grande Desejo perde o seu espaço, desloca-se, desdobra-se e transforma-se semanticamente em pequena representação da classe do Desejo, tornando-se não mais o grande Desejo, e sim meros figurantes da família do mesmo. Surge o ela deseja, o ele deseja, nós desejamos e por aí vai, mas não reaparece, senão por via de si mesmo, o grande Desejo. A própria semântica nos apresenta a intimidade do desejo com cada um de nós. O que nos demonstra que aquele que é nosso grande Desejo é para o outro uma representação sem maior importância. Nesse sentido, uma das funções sociais do Desejo é o encontro, o vincular-se. O desejo promove o encontro. O encontro de dois Desejos no trânsito, cada qual com o seu, lutando pela afirmação, que provoca desencontros. A clínica da Psicanálise é aquilo que se ajusta, já que nasce da escuta do inconsciente do ser humano. Ela é única para cada um, é aplicável na transferência. Já o Desejo é aquilo que não se ajusta, é o pulsar por excelência. O Desejo está sempre nos colocando em movimento, em uma incessante busca e deixando o corpo ofegante. Por faces do Desejo, entende-se as manifestações transvestidas de seus conteúdos, de suas ideias (vorstellung), suas representações, pois o Desejo nunca se entrega como conteúdo completo e cristalino, ele se manifesta por faces. Compete à escuta clínica e suas pedras angulares acessá-lo e possibilitar o sujeito. O sujeito procura análise para encontrar-se consigo mesmo, ou melhor, para encontrar com o seu Desejo. Se o Édipo nos condena à pergunta: "quem sou eu?", já a clínica da Psicanálise nos coloca defronte da seguinte suscitação: "qual é o meu Desejo?". Interroguemo-nos; e no trânsito como este Desejo pulsa, ou, ainda, por qual Desejo somos guiados no trânsito?
O Desejo, por ser íntimo ao sujeito, é por excelência narcísico, podendo gerar no campo do pensamento e da consciência representantes ou faces egocêntricas, assim como o sonho é do sonhador o Desejo é do desejante. Afinal, não é o sonho a realização alucinada de um Desejo? E o trânsito não seria a realização acelerada desse Desejo?
A necessidade de manipular e persuadir a população se tornou essencial para que o marketing consiga vender, e isso no trânsito tornou-se "perigoso"
O mal-estar causado no trânsito atinge todas as fases da vida, a
começar pelas crianças. Estas, para sua segurança, devem ser colocadas
em cadeirinhas apropriadas presas aos bancos traseiros. A utilização da
cadeirinha pode causar um desprazer na criança, pois algumas vezes ela
perde a visão do pai ou familiar, podendo ter a sensação de estar
isolada dentro do veículo ou "perda dos pais". Além disso, a situação
pode promover um incômodo por terem de ficar mais quietas, pois a
cadeira impõe limites de espaço e locomoção. Os pais devem ensinar as
crianças desde pequenas para que estas não aprendam a burlar a lei do
trânsito, e sim segui-las. Já na adolescência, o desprazer no trânsito
volta a aparecer quando jovens dirigem sem habilitação ou, mesmo que a
tenham, dirigem embriagados. Nos feriados, os números supracitados
tendem a aumentar, o que confirma um pulsar do príncipio de prazer
utilizado em desmedido grau sobre uma máquina com potencialidade
mortífera sem considerar o princípio de realidade.O excesso de oferta de veículos é uma tentativa de economizar tempo, considerado um dos inúmeros problemas da atualidade, tendo seus reflexos muitas vezes em estresse e outros sintomas |
Agressividade no ar
A pulsão (trieb), termo empregado por Sigmund Freud a partir de 1905, tornou-se um grande conceito da doutrina psicanalítica. A pulsão está em todos os momentos ativos na vida do sujeito: pulsão de vida (EROS), pulsão de morte (TÂNATOS). As pulsões são de origem inconsciente do sujeito e difíceis de controlar; já as pulsões de morte (TÂNATOS) levam o sujeito a se colocar repetitivamente em situações dolorosas. No trânsito, percebem-se as pulsões de morte (TÂNATOS), que são pulsões agressivas, se não em todos os momentos, pelo menos na maioria deles, quando os motoristas e até mesmo pedestres apresentam grande nível de hesitação com ira e cólera.
Pulsão de morte
Tânatos - a pulsão de morte, ou de
destruição, como queiram - é derivado da Filosofia do deus da morte,
alhures, tomou outros ares na Psicanálise. Tânatos é muitas vezes
injustiçado. Na Psicanálise seu entendimento dá-se como a energia,
pulsão de destruição e agressividade, porém, vale destacar e explicitar
sua importante participação para a vida. Ao alimentar-se, por exemplo,
tritura-se o alimento. Eis, aí, uma das inúmeras participações para a
vida da pulsão de morte. Por isso digo que a pulsão de morte não morra! |
A Psicanálise deve ir na contramão do capitalismo, utilizando novas estratégias para atuar com eficácia, sem sair do capitalismo
Com isso, o poder da evolução das "máquinas" criadas pelo
homem junto às pulsões de morte acarreta e favorece ainda mais
acontecimentos trágicos. E quando se diz de pulsões, a questão da
tentativa de controle e de precaução complica-se, ainda mais inseridas
na velocidade ímpar em que o trânsito as colocam. Pulsares sobre um
corpo de pulsões inquietantes. Enquanto Eros favorece o encontro,
Tânatos mune a destruição. Isso me remete a pensar nos acidentes, que em
geral são encontros (Eros) entre seres desejantes que resultam em
destruição (Tânatos) corpórea, de vida, dentre outras. A questão que
fica é: até quando EROS perderá adiantada essa "batalha" para TÂNATOS e o
que fazer para aniquilar essa complexa situação?Estamos numa sociedade em transição, com novas formas de sintomas, novas estratégias de vida, novas saídas, novas buscas, novas ilusões de promessas e novas aplicações do Desejo. São novas formas de nos tornarmos civilizados |
Fonte: http://psiquecienciaevida.uol.com.br/ESPS/Edicoes/86/artigo279437-1.asphttp://psiquecienciaevida.uol.com.br/ESPS/Edicoes/86/artigo279437-1.asp
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