quarta-feira, 3 de julho de 2013

A famosa bipolaridade


O filme O Lado Bom da Vida trata com humor e sensibilidade desse tema tão atual e, ao mesmo tempo, propiciou à jovem atriz Jennifer Lawrence a oportunidade de conquistar seu primeiro Oscar

por Eduardo J. S. Honorato e Denise Deschamps



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Os protagonistas Tiffany e Pat Solitano se encontram após ambos terem passado por momentos delicados em suas respectivas vidas
Dirigido por David O. Russell, o filme O lado bom da vida deu à jovem atriz Jennifer Lawrence (Jogos Vorazes) seu primeiro Oscar. Sem dúvidas, um sinal mais do que verde para uma carreira que se inicia já tão consagrada. Traz também, no elenco, Bradley Cooper, Robert De Niro, Jacki Weaver, Cris Tucker, John Ortiz, Julia Stiles e Anupam Kher (Dr. Patel). Rendeu a Robert De Niro uma indicação ao Oscar, depois de 21 anos.
Por muitos anos os amantes da Cinematerapia se limitavam a poucas obras que tratassem desse tema de forma tão atual, quadro de sofrimento que é tão mencionado nas mídias e redes sociais: a famosa bipolaridade.
O PERSONAGEM DE BRADLEY COOPER É CONSTRUÍDO DE FORMA QUE PODEMOS SUPOR UM QUADRO DE TRANSTORNO BIPOLAR COM TODA A INSTABILIDADE QUE COSTUMA CARACTERIZÁ-LO
 
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Foram anos com poucos clássicos, como As Horas e Mr. Jones (Richard Gere), Romulus Meu Pai, recentemente O castor (que abordamos aqui na nossa coluna) e Melancolia (de Lars Von Trier). O lado bom da vida chega e traz para a nova geração uma representação cinematográfica de algo que "aparentemente" se tornou mais comum, o que também é contestado por muitos clínicos nos dias de hoje. O que antes era denominado de Psicose Maníaco Depressiva, agora aparece com uma roupagem falsamente "glamourosa", adaptativa de uma sociedade estressada e, de certa maneira, vangloriada no cinema.
Os dois personagens que conduzem o roteiro são Pat Solitano (Bradley Cooper) e Tiffany (Jennifer Lawrence), que, ao se encontrarem, vão se mostrar bastante peculiares ao espectador. Em tom de comédia, nos mostra um encontro pra lá de singular. Tanto Pat Solitano, quanto Tiffany, vindos de um anterior momento bastante delicado na vida de cada um, fatos que nos são narrados de uma maneira que faz sorrir, apesar de tratarem de questões que poderiam ser vistas como muito sofridas, sérias e complexas. O personagem de Bradley Cooper é construído de forma que podemos supor um quadro de Transtorno Bipolar com toda a instabilidade que costuma caracterizá-lo.
Essa bipolaridade dos dias de hoje, bastante mencionada nas revistas semanais, redes sociais e nos programas de televisão, há algum tempo não tinha toda essa idealização e outrora foram chamada de PMD, quando esse sofrimento era entendido como parte de um quadro psicótico, com muito sofrimento egossintônico. O que seria então esse "transtorno de humor?" Se entendermos o humor como um estado emocional, uma espécie de prisma pelo qual vemos o mundo e a nós mesmos, podemos perceber o quão grave seria uma distorção dessa percepção. Ver-se, perceber e se relacionar com os outros de uma forma distorcida. Haja Ego para acomodar tanto sofrimento. Esses chamados transtornos, então, seriam alterações nesse estado emocional, variando em profundidade depressiva e elações maníacas.
O RETORNO
O filme começa com o retorno de Pat para a casa de seus pais, após um período de internação. A recepção de seu pai (Robert De Niro) já dá um tom do fora do comum à situação. Recém-separado e sem emprego, Pat se vê diante de uma situação que só faz agravar sua pouca disposição. O mundo afetivo ao seu redor, alguns poucos amigos e sua família fazem silêncio sobre o que se passou, mas, não sem cobranças, incentivam-no para que se afaste de tudo que o joga em direção aos conflitos que culminaram com a crise.
Podemos nos questionar sobre até que ponto Pat estaria "pronto" para sair da tal instituição psiquiátrica, pois esse estar "pronto" teria qual significado? Estatisticamente, sabemos que estes pacientes têm baixa adesão ao tratamento medicamentoso, apesar de fundamental e necessário.
Seja pelos efeitos colaterais, seja pelos quadros de mania ou hipomania, quando podem sentir que não necessitam mais da muleta química. Seja como for, mesmo nos oito meses passados institucionalizado, Pat não mudou quem ele é ou a maneira como lida com seus objetivos e relações e, ao cumprir sua pena - pois ele deixa claro logo no início que seu tratamento era algo determinado pela justiça e não por um vínculo com a saúde - mais do que normal que ele volte a estabelecer os mesmos laços que tivera outrora.
Em casa, Pat lê um livro de Hemingway tentando entender o mundo de sua ex- mulher, até que, ao término do livro, o atira pela janela, indignado com o que leu. Sabemos o quanto a escrita desse autor é metafórica, densa na concepção de seus personagens, questionadora do mundo e com certo tom de angústia, a qual podemos supor, também, atravessou a vida desse incomparável escritor, que, em sua trajetória real, acabou cometendo suicídio. Fato é que todos os seus personagens são de uma singularidade cativante. Pat, ao contrário, tenta se eximir do que acontece, um toque de um excelente humor, e ele acorda seus pais no meio da madrugada para reclamar de Hemingway, e avisa a eles que se quiserem se queixar de terem sido acordados, que reclamem com o Hemingway. Um toque muito interessante que o roteiro coloca e que nos faz pensar no quanto muitos dos comprometimentos mentais começam, justamente, pelo fato do sujeito não se implicar naquilo que vive, optando por se ver como uma vítima da situação, sem entender toda a dinâmica que sustenta seu sofrimento e sua inadequação diante da realidade e parte de seus próprios impulsos. Os tais dos "benefícios secundários", conceito fundamental em Psicopatologia Psicanalítica. Hemingway é culpado pelo término do casamento de Pat Solitano, pelo afastamento de sua esposa e também culpado por seus pais terem sido acordados no meio de seus sonhos.
SE ENTENDERMOS O HUMOR COMO UM ESTADO EMOCIONAL, UM PRISMA PELO QUAL VEMOS O MUNDO E A NÓS MESMOS, PODEMOS PERCEBER O QUÃO GRAVE SERIA UMA DISTORÇÃO DESSA PERCEPÇÃO. VER-SE E SE RELACIONAR DE UMA FORMA DISTORCIDA
O grande amigo de Pat, com a clara intenção de animá-lo, convida-o para um jantar com o objetivo de lhe apresentar a prima de sua mulher, em uma sequência deliciosamente risível. Entra em cena Tiffany (Jennifer Lawrence). O espectador não leva mais do que alguns segundos para identificar um encontro realmente singular entre aqueles dois; seus interesses durante o jantar, seus papos, causam um olhar de estranheza em seus anfitriões e algum riso no público. Está composta a dupla que irá conduzir o fio dessa produção, colocando de uma maneira bastante criativa questões emocionais fortemente presentes na vida cotidiana de cada um de nós.
Tiffany irá "forçar" a aproximação, literalmente correndo atrás de Pat. Recém- -enviuvada, ela busca um par para a dança, aqui podemos pensar na vida e suas complexas coreografias. Os sintomas dos personagens imprimem na história uma versátil abordagem, ambos (Pat e Tiffany) longe de questionarem aquilo que o mundo olha como o "estranho". O encaixe de suas peculiaridades se faz de maneira sincera, sem subterfúgios ou disfarces, compõem um par realmente diferente, que irá emocionar o espectador ao longo da duração da película, um pouco mais de duas horas. Que casal mais perfeito e bem retratado no cinema. São duas horas de risadas, choros, nervosismo e uma roleta russa de emoções e sentimentos. Algo tão comum na vida das duas personagens e que estes conseguem nos transmitir em alguns longos minutos.
O LIVRO
O filme foi baseado em um livro, o primeiro de seu autor, Matthew Quick, que não foi considerado, assim, de saída, um sucesso de vendas que chamasse a atenção. Nessa história, vemos um homem que, depois de uma internação que ele não sabe por quanto tempo ocorreu e que acontece por exigência legal, pouco se lembra do que realmente houve durante sua crise. Ele está disposto a reconquistar sua ex-esposa Nikki (Brea Bee), que, na verdade, prefere que ele se mantenha afastado. Poucos dados o enredo nos fornece sobre os motivos, apenas deixa claro que houve ali algo grave, quando foi pedida, legalmente, uma ordem de afastamento pela ex-esposa para o ex-marido. Sua ex-esposa, a possibilidade de reaver o contato com ela e os exercícios físicos passam a ser os motivadores para que ele lute contra a depressão que o invade, assim também como a pitoresca revolta que desenvolve em relação a Ernest Hemingway. De alguma maneira, aí se constrói todo o argumento dessa produção, resgatar o que de bom pode haver na vida, apesar de nem sempre tudo dar certo. A máxima da obra que se tornou muito conhecida, e que costura esse filme, diz: "é melhor ser gentil que ter razão".
O ESPECTADOR NÃO LEVA MAIS DO QUE ALGUNS SEGUNDOS PARA IDENTIFICAR UM ENCONTRO REALMENTE SINGULAR ENTRE AQUELES DOIS; SEUS INTERESSES DURANTE O JANTAR, SEUS PAPOS, CAUSAM UM OLHAR DE ESTRANHEZA NOS ANFITRIÕES
 
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Apesar de tudo conspirar contra Pat e Tiffany, a aproximação deságua numa intensa sintonia
Há uma clara constatação de que, embora a vida não seja assim uma tarefa tão fácil e que nem sempre o prazer a norteie, lutamos em Eros. Há um princípio de que se quer vencer, triunfar sobre as adversidades e impedimentos e talvez aí entre o personagem de De Niro, que no filme faz o pai que busca um caminho para chegar perto do filho. O futebol marca esse pedido, pois se Pat estivesse presente ao jogo, seu time ganharia, e seu pai joga aí todas as suas fichas (suas economias para aposentadoria), em um claro recado de confiar no vínculo com seu filho, confiar de que ele permaneceria. As características explosivas desse pai remetem ao transtorno de humor do filho, que tenta com toda energia conter seus ataques de fúria e se manter no controle, ser gentil e generoso, reconquistar, assim, a confiança de Nikki. Interessante observar que esse controle fica perto de ser perdido ao som da música My Cherie Amour, de Stevie Wonder, tão adocicada que não pode descrever o real de um encontro amoroso, atravessado, também, quase sempre, por seus desencontros e estranhezas.
O ESPECTADOR NÃO LEVA MAIS DO QUE ALGUNS SEGUNDOS PARA IDENTIFICAR UM ENCONTRO REALMENTE SINGULAR ENTRE AQUELES DOIS; SEUS INTERESSES DURANTE O JANTAR, SEUS PAPOS, CAUSAM UM OLHAR DE ESTRANHEZA NOS ANFITRIÕES
O encontro forçado de Pat e Tiffany se dá, justamente, pelo oposto do ideal, se encontram via suas dificuldades, sintomas, momentos de angústia. E nessa aproximação algo de sintonia se constrói para ambos, sintonia que finalizará na dança que desenvolvem, para a qual, antes, não possuíam qualquer talento especial. Vencer não era o principal, tinham que obter, em sua apresentação, uma boa nota, um oito, que será comemorado como um troféu, como o lado bom da vida. Fica quase impossível não comentar aqui o tropeção de Jennifer Lawrence ao subir os degraus da fama indo receber seu troféu, quase um recado do filme: a vida não é fácil, nem sempre as coisas saem perfeitas, mas alguma alegria é possível, e conquistar é algo que se busca sempre, um prazer inenarrável, que nos coloca trôpegos.
A tão esperada dança, para a qual se preparam durante o filme, acaba por se tornar um dos momentos mais angustiantes da película, quando, assim como as personagens, os espectadores embarcam na sua roleta de emoções. Os ensaios se tornam metafóricos, para ensaios de aprendizado de emoções, de lidar com os próprios sentimentos. Os passos da dança se transformam em aptidão em lidar com suas próprias emoções. Quando Pat e Tiffany adentram o salão e começam sua performance, ali estará representado o humor de ambos. Altos e baixos, dançantes e lentos, fortes e intensos, dramáticos e depressivos. É por intermédio da dança e da música que Pat encontra um equilíbrio de seu afeto e, assim, consegue acalmar seu humor e estabilizá-lo. Tiffany encontra uma constância na própria inconstância e confronta o ditado, quando finalmente se atraem e se enamoram, na busca de uma estabilidade de relacionamento em meio ao caos pulsional.

http://portalcienciaevida.uol.com.br/esps/Edicoes/89/artigo290527-2.asp
divulgação O LADO BOM DA VIDA. Título original: Silver Linings Playbook. Diretor: David O. Russell. País: EUA. Gênero: Comédia dramática. Duração: 122 min. Ano de lançamento: 2013. Distribuidora: Paris Filmes. Classifi cação: 12 anos

Eduardo J. S. Honorato - psicólogo e psicanalista.
Denise Deschamps - psicóloga e psicanalista.
Autores do livro Cinematerapia: entendendo conflitos. Participam de palestras, cursos e workshops em empresas e universidades sobre este tema. Coordenam o site www.cinematerapia.psc.br

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