O sujeito do sobrepeso já ocupou lugares históricos de status. Freud, ao dizer do mal estar na civilização, perpassa a noção do belo aplicado à constituição civilizatória. Hoje, vê-se veemente isto, e o corpo atual cultivado é o dito sarado, magro e sem gorduras. Basta ativar qualquer órgão sensorial para percebê-los no ar dos atos humanos. Segundo Freud, a felicidade da vida é buscada predominantemente pela fruição da beleza. Freud postula, ainda, que "a atitude estética em relação ao objetivo da vida oferece muito pouca proteção contra a ameaça do sofrimento, embora possa compensá-la bastante" (Freud, 1930). Eis uma saída ofertada diante do cultural para o mal estar que hoje tornou-se ilusão.
O belo encanta o olhar e convida ao encontro com o outro. Aqui, consideraremos o olhar como forte registro na constituição do sujeito, não apenas o olhar do vísivel com os olhos e, sim, o perceptível sensorialmente ao mundo e a si próprio. Na constituição do sujeito, é no perpassar a fase do espelho que o olhar se depara com o princípio de realidade e com a tênue separação da realidade psíquica com a realidade externa, assim como, também, com a noção do eu e o Outro. O olhar do obeso encontra dificuldade neste avanço e faz como Édipo na trama final de sua tragédia, onde fronte a frustração tenazmente fixado ao sentimento de culpa, perfura os próprios olhos e retorna a si próprio, regredindo-se por repressão.
Ainda utilizando as metáforas mitológicas, chamaremos a presença da "Cabeça da Medusa", que também representa o obeso mórbido de nossa contemporaneidade. O obeso, ao encarar frontalmente a ameaça de castração, transforma-se em pedra, cristalizando-se como o próprio Desejo, afastando-se dele nas desesperadas tentativas de saciar a falta, alimentando ainda mais o sintoma e mantendo a causa isolada sobre os gozos do corpo. Os obesos também se isolam, até mesmo simbolicamente, fazem do seu corpo sua "calota acústica".
O obeso
caminha rumo ao alimento por questões singulares de sua história de
vida. Utiliza o princípio de prazer e a tendência à repetição de uma fi
xação que o leva à compulsão alimentícia
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O obeso apresenta-nos esses significantes. Por não brilhar aos olhos do outro, ele sofre no silêncio do encontro consigo mesmo. Engole o mundo em uma passividade que recorda a fase oral, fase fixada do obeso cuja repetição firma-se no erotismo oral. O obeso, assim como o sobrepeso, ultrapassa as margens visíveis julgadas pela cultura do espelho; O obeso caminha rumo ao alimento por questões singulares de sua história de vida. Utiliza o princípio de prazer e a tendência à repetição de uma fixação que o leva a compulsão alimentícia e envereda-o para questões biológicas mórbidas.
Academias, medicamentos, pílulas, promessas, aparelhos, segredos, dietas, dentre outras, são as formas que o social se lembra como sendo dos obesos, na sociedade. Nas formas de lucrar. Quando eles não aderem a essas práticas ofertadas e caem no outro lado do consumismo geram sobre si mesmo um cordão de isolamento, no qual o social tende a afastar aquilo que reflete suas próprias questões, deslocando ao outro as agruras de si próprio. Neste sentido, a cultura do belo é, na verdade, a cultura do afastamento de si próprio sob máscaras de ilusões da tão sonhada completude, felicidade e modelo narcísico. Paga-se um preço pelo sustento desse Desejo infindável e também pelo seu não sustento. Ficando-nos sempre a pergunta: quais são as faíscas do fogo desse Desejo no social e o que ele queima no sujeito? É como se o obeso chegasse à clínica com o grito igual ao do filho ao pai no sonho do capítulo VII da "A Interpretação dos Sonhos". "Pai, não vês que estou queimando?"
Distorção psíquica
O espelho, desde a sua criação, é utilizado para refletir imagens. A imagem do espelho não reflete por si só. A imagem refletida perpassa os estilhaços da vidraça do olhar, onde recebe distorções advindas do psíquico. O ser humano, ao olhar para o espelho, não vê o refletido e, sim, um reflexo que faz par com seus pulsares psíquicos de momento, podendo distorcer aquela imagem perceptível e torná-la monstruosa a si ou sedutora. |
Obesidade e sujeito
O Desejo permanece o mesmo, sendo a mola mestre de cada um, que possibilita o sonhar. Para existir um sonho, deve necessariamente existir um Desejo. Porém, este Desejo carece de manutenções psíquicas, sendo um dos responsáveis e causadores destas deformações, o supereu - instância psíquica de forte cunho repressor. O supereu é a lei do aparelho, nossa moral psíquica, digamos assim. Dissemos moral, não ética; a ética permanece sendo a do Desejo. O supereu advém da cultura e é o herdeiro do complexo de Édipo. Desta forma, o sujeito obeso perdeu parte de sua ética em prol da avassaladora moral superegoica que lhe é imposta em sua forte repressão.
O obeso, assim
como o sobrepeso, ultrapassa as margens visíveis julgadas pela cultura
do espelho, e se mune de pulsações psíquicas
O sujeito
obeso tem fome pulsional como uma saída de um desamparo. O desamparo, o
alimentar-se e a passividade são os três representantes magistr ais que
ditam a influência da fixação na erotização oral
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Epidemia infantil
Um dos problemas mais sérios do mundo moderno é a obesidade infantil. O cinema não ficou fora desse debate. O documentário Muito além do peso discute por que 33% das crianças brasileiras pesam mais do que deveriam. As respostas envolvem a indústria, o governo, os pais, as escolas e a publicidade. Com histórias reais, o filme tem direção de Estela Renner e conta no elenco com Jamie Oliver e Frei Betto, entre outros. |
O sujeito nasce do corte edipiano sobre a dominância do princípio de prazer que torna-se a posteriormente tendência. Quem, por ventura, seria o sujeito obeso? O obeso é aquele que, quando chega à clínica psicanalítica, chega recordando-nos da enigmática esfinge. Ele chega no ritmo do: "Decifra-me ou eu te devoro!". Seus sintomas consistem, em geral, em compulsões atuantes sobre o alimento. Enquanto houver alimento ele come, ingere. Elegendo preferencialmente alimentos que carregam em si significantes que o remetem aos processos psíquicos.
Quando está amargurado, alimenta-se de doce, para adoçar-se. Os alimentos gordurentos o elevam a uma sujeira que incorpora em si a falta de manifestação pulsional. Satisfaz momentaneamente o afeto, mantendo intacta a ideia, cujo objetivo de comer tende a isolar. Sua baixa resistência à frustração o faz tentar recompensar pela comida. No obeso, o ato de comer atravessa o instintual, sobrecarregando o pulsional e o corpo, levando o sujeito ao gozo do além de princípio de prazer sobre forma da repetição, que é o protótipo da pulsão de morte deslizante na plataforma de um prazer barato.
O sujeito obeso está cada vez mais próximo ao encontro com o real, afastando-se do Desejo como busca, mantendo-o apenas como pedra angular de sua estrutura. O corpo do obeso é o sustento da sexualidade. A obesidade não é considerada uma patologia quando se restringe ao sobrepeso, ela é uma patologia na medida em que traz prejuízos ligados à questão biopsicossocial. O sujeito obeso tem fome pulsional como uma saída de um desamparo. O obeso escolhe o que comer, mas não quando parar de comer. É um sujeito fortemente reprimido. A pulsão nos permite a escolha, e a repetição estreita essa flexibilidade elegível. O desamparo, o alimentar-se e a passividade são os três representantes magistrais que ditam a influência da fixação na erotização oral, a mais arcaica do desenvolvimento humano segundo Freud. O aparelho psíquico produz suas próprias saídas e, quando este não mais se arranja satisfatoriamente, a clínica é acionada.
O obeso, assim como aquele que tem uma questão mal resolvida, sente- se sensível em relação aos discursos sobre seus representantes, neste caso a comida. O 'estranho' trabalhado por Freud ataca e desencadeia a angústia que tende levá-lo para a sua única saída conhecida e experimentada pelo seu aparelho psíquico. O sujeito obeso é um sujeito que representa a atual civilização. Mostra-se influenciado pelo discurso da busca da felicidade e do culto à beleza, além do principal, que é o abandono do Desejo para realizações repetitivas do aqui e agora.
Eduardo Lucas Andrade é escritor, palestrante e aluno de psicologia na Faculdade Presidente Antonio Carlos; aluno de Psicanálise no Estúdio Ato de Psicanálise (Bom Despacho - MG).
João António Fernandes é psicanalista freudiano e professor na Analizzare (Divinópolis - MG)
http://psiquecienciaevida.uol.com.br/ESPS/Edicoes/89/artigo290551-3.asp
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