quarta-feira, 15 de abril de 2015

Distimia: um embrulho só

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A mais grave consequência dessa mudança ideológica da criação de novos diagnósticos ocorreu nos transtornos do humor. Nesse item, a DSM-IV e, em um grau quase imperceptivelmente menor na CID-10, sob a capa de uma suposta cientificidade, produziram uma involução diagnóstica. Na fúria para eliminar o termo ‘neurose’, as classificações fundiram os diagnósticos de neurose depressiva e personalidade depressiva em uma única categoria clínica: a distimia. Na psicopatologia geral, a palavra distimia referia-se a um sintoma, o da quebra súbita do controle do humor, como, por analogia, disbulia refere-se à quebra súbita do controle da vontade. Contrariamente a sua origem etimológica, o termo distimia foi elevado de sintoma à categoria de diagnóstico. Ao mesmo tempo, o novo uso do termo distimia o tornou impreciso em relação a sua fronteira com o diagnóstico de transtorno depressivo maior.
Na neurose depressiva ou depressão neurótica, temos um quadro de hipotimia, surgido a partir de um tempo preciso ou não, mas que nitidamente não existia antes, pelo menos em gravidade. Um quadro clínico que, em sua maioria, não é incapacitante para a vida social e para o trabalho. Na neurose, a ‘depressão’ surgiu há um tempo determinado, incomoda seu portador, muitas vezes com a mescla de ansiedade e depressão ansiosa, e o paciente procura pelo tratamento. As pessoas à volta do paciente podem ou não sofrer com seu transtorno, mas é bem claro que ele sofre muito mais. Certamente trata-se mais de um sintoma subjetivo do que de um sintoma social (aqui nos referimos aos sintomas sociais como transtornos socialmente desagregadores, desde os conflitos intersubjetivos até legais, e não ao conceito psicanalítico de laço social). A experiência clínica mostra como tais pacientes não reagem ou reagem mal aos antidepressivos. Entre pesquisas que classificam taxas altíssimas de incidência e prevalência da ‘depressão’, os pacientes com neurose depressiva constituem um dos grandes mercados para tratamentos psicoterápicos de todos os tipos. Até a CID-9 o diagnóstico de depressão neurótica fora mantido.
Em paralelo, na mesma classificação anterior, entre os transtornos de personalidade, era incluído o transtorno afetivo de personalidade, no qual podiam ser englobados, também, os diagnósticos de personalidade depressiva e de personalidade ciclotímica. Ainda existia em tratados de psiquiatria um termo mais remoto: a personalidade hipomaníaca. Em todos esses diagnósticos, o sintoma é muito mais social que subjetivo. O paciente sofre menos que os outros a sua volta ou, então, simplesmente não sofre. Raramente o portador de um transtorno de personalidade busca tratamento. E, como em todos os outros transtornos de personalidade, aqueles associados com a afetividade também não respondem à medicação. Caricaturalmente, a personalidade depressiva é rotulada por muitos de síndrome da hiena, em referência a um antigo desenho animado infantil, em que a personagem, eternamente queixosa e pessimista, sempre repetia: ó vida, ó azar! Quando associado a queixas hipocondríacas, o diagnóstico é facilmente identificável para o leigo: aquelas pessoas que você se arrepende de perguntar – como vai?
A distinção de neurose e transtorno de personalidade é equivalente na obra de Freud à distinção entre neurose transferencial e neurose de caráter, que culminou possuindo por fulcro a distinção psicanalítica entre ego-distônico e ego-sintônico, diferença estrutural básica para a clínica. Curiosamente, os mentores do DSM-IV, em sua ojeriza à Psicanálise, esqueceram de retirar esse conceito, revelando como mesmo a mais descritiva das classificações torna-se incompreensível sem alguma compreensão dinâmica. Na DSM-IV, lemos (2002, p. 642): “(...) as características que definem um Transtorno de Personalidade podem não ser consideradas problemáticas pelo indivíduo (i.e., os traços são ego-sintônicos)”.
A classificação atual manteve a categoria genérica dos transtornos de personalidade, mas retirou qualquer diagnóstico referente aos transtornos afetivos de personalidade. Além do transtorno depressivo de personalidade, também foram suprimidos os transtornos de personalidade ciclotímico e hipomaníaco. Tratou-se de uma exclusão específica e notória, uma vez que todos os outros transtornos de personalidade antigos foram mantidos: obsessivo-compulsivo, histriônico, paranoide, esquizoide, antissocial. Sendo assim, todo e qualquer transtorno do humor foi considerado ego-distônico, portanto sempre necessitando de tratamento, medicamentoso, é claro.
Neurose depressiva e personalidade depressiva foram fundidas sob a égide da distimia. E nessa um pequeno item, se considerados todos os outros diagnósticos da seção de transtornos do humor, antigamente considerados ‘psicóticos’. Qualquer leigo com acesso à internet ou médico de formação precária em Psiquiatria irá ler hoje a distimia não entre as neuroses e os transtornos de ansiedade – ‘mais leves’ –, mas ao lado da antiga psicose maníaco-depressiva e dos atuais transtornos bipolar e depressivo maior – ‘muito mais graves e sérios’.
Movida por uma ideologia declaradamente antipsicanalítica, a redução de todos os quadros de depressão não psicótica no diagnóstico de distimia, embasa a idéia de que todas as depressões são medicalizáveis. A aliança da psiquiatria organicista com a terapia comportamental, que também se expressa com grande intensidade no Brasil, reflete a luta pelo mercado do tratamento das depressões diante de todas as outras formas de psicoterapia, principalmente a psicanalítica. A crítica de que a maioria das depressões neuróticas e das personalidades depressivas não reage ou reage mal à medicação ficou obscurecida pela criação do diagnóstico atual de distimia.
O excesso do uso de antidepressivos tem conduzido a uma revisão crescente de sua eficácia e de seus efeitos colaterais (bem compreensíveis, se considerarmos a psicodinâmica dos transtornos de humor), como o aumento de suicídios, assim como os estudos sobre a cessação de seus efeitos após certo tempo. As críticas se tornaram ainda mais agudas nos últimos anos. Se forem reais as hipóteses do aumento da incidência dos quadros de esclerose múltipla e de doença de Alzheimer nos países industrializados do Ocidente, além de causas ambientais como a poluição, o uso excessivo e continuado de medicações psiquiátricas terá de ser pesquisado seriamente como uma das possíveis causas. Mas a ‘era do Prozac’ baseia-se em mais do que em um conflito de interesses de mercado.



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