quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Parte 3- Continuação do artigo de ontem: Perversões ou Perversão por Geraldino Alves Ferreira Netto




Continuação do artigo de ontem...
Perversões ou Perversão
Geraldino Alves Ferreira Netto



Laforgue, citado por Elisabeth Roudinesco (1988), foi o primeiro discípulo francês de Freud, um dos introdutores da psicanálise na França, e diretor do Grupo Evolução Psiquiátrica. Escreveu o livro La psychanalyse et les névroses, e ficou famoso como clínico, principalmente pelos trabalhos com pacientes psicóticos. De certa feita, foi informado sobre um paciente que não conversava com ninguém, já havia doze anos, e que proferia sempre uma única e mesma frase. Apesar de aconselhado a não perder tempo com este caso, em que todos haviam fracassado, Laforgue assume o desafio de fazer o paciente falar. Dirige-se a ele e pergunta: “quem é você?” Resposta de sempre: "Sou o cavalo de Nancy, com a mulher em cima". Ao que Laforgue retrucou: "Bom dia, Joana d'Arc". E o paciente: "Até que enfim, um homem me compreende". E voltou a falar normalmente.

Laforgue fez supervisão com Freud, bem como manteve uma longa correspondência com o mestre. No texto sobre O Fetichismo, Freud cita uma frase do discípulo: "O menino escotomiza sua percepção da falta de pênis na mulher". Mais tarde, afastou-se de Freud por causa de ciúmes pela princesa Maria Bonaparte.

Outro nome decisivo nesse momento importante da teoria psicanalítica é o do pouco citado Édouard Pichon, autor da famosa Gramática, em sete volumes, e de um artigo intitulado "Sur la signification psychologique de la négation en français". Ele aprofundou o conceito de escotomização, que na oftalmologia indicava uma impressão visual incidindo sobre um ponto cego da retina, aplicando-o à psicanálise como "um mecanismo inconsciente ou uma cegueira, pelo qual o sujeito faz desaparecer da memória ou da consciência certos fatos desagradáveis".

Segundo E. Roudinesco, Pichon chegou ao inconsciente freudiano através da gramática. Afirmava que a negação gramatical tinha a ver com a separação entre consciente e inconsciente. E a língua francesa tem uma particularidade ímpar com relação à negação. A frase negativa utiliza dois advérbios ao mesmo tempo, dos quais nenhum por si só é negativo. Antes do verbo, vem a partícula ne, e depois do verbo podem vir pas, rien, jamais. Numa linguagem erudita, o ne pode ser suprimido: J’en sais rien (não sei nada disso). Portanto, o elemento negativo está mais no segundo membro. A particularidade consiste no seguinte: quando o segundo membro é constituído por rien, aucun, personne, plus, guère etc, a negação aplica-se a fatos que o locutor já não encara como fazendo parte da realidade. O seguinte diálogo de uma entrevista jornalística ilustra a questão: "O caso Dreyffus, disse Esterhazy, é para mim um livro fechado para sempre". Resposta do jornalista: "Il dut se repentir de l'avoir jamais ouvert" (deveria arrepender-se de tê-lo aberto algum dia).

O fato aludido estava forcluído. Pichon chamou de forclusiva a segunda parte da negação na língua francesa. Um fato acontecido era afetivamente excluído do passado.

Numa outra característica da língua, a expressão ne ... que acumula, ao mesmo tempo, uma afirmação e uma negação, como na frase: je ne parle que français (eu só falo francês). Nesta frase há uma negação (eu não falo) e uma afirmação (eu falo), exatamente como Freud concebia a denegação na clássica frase de seu paciente: não é minha mãe, que deve ser entendida como: (é minha mãe, mas não suporto isto). Aliás, é pouco provável que Pichon tivesse conhecimento do texto de Freud sobre A Denegação, escrito em 1925, mas só traduzido para o francês em 1934.

Pichon teve, portanto, um papel essencial na história da psicanálise. Aprofundou a polêmica Freud-Laforgue sobre a escotomização e inventou, em 1928, o conceito mais apropriado de forclusão, tirado de um fenômeno da língua, como que antecipando a tese lacaniana do inconsciente estruturado como linguagem. Enquanto a escotomização mantinha a psicose como patologia médica, a forclusão situava o mecanismo da psicose como fenômeno de linguagem, e não como anomalia. Curiosamente, e estranhamente, o Vocabulário de psicanálise publicado pela dupla Laplanche-Pontalis (ex-analisandos de Lacan) atribui a invenção do conceito de forclusão a Lacan, sem nenhuma referência a Pichon. O próprio Lacan apresentava-se como autor da façanha. Entretanto, 25 anos depois, no Seminário I, em 1954, Lacan retoma o mesmo debate, agora com Jean Hyppolite, não mais pela vertente da escotomização, mas da denegação.

A algumas particularidades da língua francesa, portanto, devemos os conceitos de denegação, desmentido e forclusão. Com base na experiência clínica com o elemento fetiche, Freud postula que, na perversão, há duas realidades opostas e simultâneas: por um lado, a negação e, por outro, o reconhecimento da ausência de pênis na mulher. Ausência esta que o fetiche escamoteia. É a mesma clivagem do ego, antes entendida como mecanismo da psicose, agora estendida à neurose e à perversão, que passa a se alinhar com as estruturas clínicas, assim descritas:

Neurose: conflito interno, seguido de recalque;
Psicose: reconstrução de uma realidade alucinatória;
Perversão: denegação ou desmentido da castração, com fixação na sexualidade infantil.

Sendo assim, o percurso de Freud até então consistiu em ultrapassar a descrição das perversões, para chegar a um mecanismo geral da perversão que, mais do que apontar para uma disposição polimorfa infantil, descreve a atitude de uma escolha subjetiva diante da diferença anatômica dos sexos, tanto no homem quanto na mulher.

Texto retirado do site: http://www.psicanaliseemcurso.com.br

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